Wednesday, October 27, 2010
Singularidades
Ao ler um dos seus posts, certa vez, senti-me tão próxima do que ela estava a contar e ainda mais do que ela estava a esconder que não pude evitar deixar-lhe lá um simpático "Às vezes gostava de não ser uma simples comentadora do teu blog e ser mais próxima de ti (não me leves a mal), porque as tuas histórias contadas aos bocados e através de metáforas deixam-me uma sensação agridoce de curiosidade e preocupação...". Apeteceu-me. Se calhar é estranho, não tenho noção do protocolo social. Mas a verdade é que ela me mandou um mail, adicionámo-nos no MSN e assim começámos a conversar.
Sempre tivemos tendência para conversar longas horas sobre tudo e nada. Começou bem cedo. Não me lembro da primeira conversa, mas não teve aqueles horrores iniciais da horda do "tudo bem?" ou "então, que fazes?". Sei lá, fluiu a conversa. Nos dois sentidos, sempre. Ora ia eu falar, ora vinha ela.
Tornámo-nos amigas. Ou tão amigas quanto nunca ter estado ao vivo com uma pessoa pode permitir. Nunca vi a Isa (sem ser por fotografias) nem nunca lhe ouvi a voz, mas nestes meses todos que falámos, ela tornou-se importante para mim. Era uma espécie de meu diário, contava-lhe tudo até ao mais ínfimo pormenor. Fazia-me sempre sorrir nos dias em que estava mais em baixo.
Acima de tudo, a Isa era um exemplo. De coragem, de luta, de entrega. Soube assim que a conheci da sua grande história de amor, daquelas dignas de filme, com dramas e outras pessoas pelo meio e até funerais. Uma história de amor daquelas que vale uma vida inteira. A Isa não deixou de ser quem era e de fazer o que queria por amor, ela fez tudo. Mas simplesmente apercebeu-se que, para ela, o amor valia muito mais e correu atrás dele. E foi por isso que eu nunca a conheci pessoalmente: uma mera semana antes de eu chegar a Londres, ela estava a partir para NY para continuar a sua história de amor.
A Isa fazia-me acreditar no amor e na força dele. Fazia-me acreditar em mim, apesar da minha óbvia nabice no assunto. Contava-me as mais incríveis histórias de coisas que já lhe tinham acontecido. Gozava comigo quando era devido. Falávamos de cultura: séries, livros, filmes, música. Achava amorosa a tendência dela para grandes artistas mainstream, à la Madonna e Lady Gaga. Falávamos imenso sobre cusquices de celebridades, só porque tem piada. E ela falava-me de como é viver em NY e de como são os americanos no seu habitat natural. O que eu me ria com as desventuras que ela tinha no emprego...
E aquele amor imenso que me enchia de esperança...
A Isa era a receptora do mail que eu enviava quando não conseguia dormir porque tinha o peito cheio. Era a pessoa que me enviava mails a contar o que andava a fazer ou a enviar-me links parvos, porque nem sempre se tem vida para passar muito tempo no computador, apesar de, em média, falarmos uns 4 dias por semana.
A Isa "desapareceu" há 3 meses. Desde Julho que não sei nada dela. E isto é um pouco horrível, porque afinal como se pode saber de uma pessoa que nos é próxima apenas pela Internet se ela desapareceu da Internet? Eu sei que deve haver muita gente que não compreende e a quem isto não faz sentido, só que eu posso nunca ter dado um abraço à Isa, mas mostrei-lhe o meu coração. Ela era o melhor que eu podia tirar das horas passadas ao PC. Nunca falhava em deixar-me melhor, mais leve.
E não consigo perceber porque é que essa parte da minha vida cibernética desapareceu... E preocupo-me. Mando mails à falta de outra forma possível de contacto. Abro a inbox e é sempre uma desilusão não ver nada dela por lá. E às vezes questiono-me se ela existiu mesmo ou se a inventei, porque quem é que não tem Facebook hoje em dia? E depois acho que ela nunca desapareceria para todo o sempre sem me dar um aviso, mas ao mesmo tempo prefiro acreditar que ela está tão feliz e passou para uma fase tão melhor na sua vida que, ao passar para lá, não houve oportunidade para uma despedida. É sempre melhor pensar assim do que nas alternativas negras.
Mas tenho saudades dela. O pós-concerto da Lady Gaga vai perder um pouquinho da sua piada porque não vamos trocar impressões sobre as nossas experiências, a dela nos US, a minha cá. Queria mostrar-lhe a Florence e saber a opinião dela. Queria que ela soubesse o quanto cresci neste último ano e a importância que ela teve nesse processo. Queria que ela se orgulhasse da forma como me apercebi de padrões e os comecei a combater. Queria que ela me dissesse que estou errada, que não devia deixar o amor para segundo plano. Queria dizer-lhe que vi o primeiro episódio de The Good Wife e adorei. Queria que ela soltasse um dos seus discursos de bom humor exasperado devido à minha franqueza e aos meus acidentes de percurso. Queria ter mais debates animados sobre quem é gay ou deixa de ser. Queria que ela me mostrasse poemas e me citasse Jorge Amado. Queria mostrar-lhe coisas que sei que ela iria adorar e esperar pela reacção dela.
Acima de tudo isso, quero que ela esteja bem e feliz. Quero que ela esteja com quem ama.
Bolas, miúda, já o mereceste! Vê lá se estás a deitar a América abaixo com a tua fixeza, sim? Os americanos bem podiam aprender contigo.
Não me esqueço de ti.
MJNuts
Monday, October 25, 2010
Elogio do Amor Puro
Parece que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Teixeira de Pascoais meteu-se num navio para ir atrás de uma rapariga inglesa com quem nunca tinha falado. Estava apaixonado e foi para Liverpool.
Quando finalmente conseguiu falar com ela, arrependeu-se.
Quem é que hoje é capaz de se apaixonar assim? Hoje em dia as pessoas apaixonam-se por uma questão prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão mesmo ali ao lado. Por que se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria. Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornam-se sócios. Reunem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psicosócio-bio-ecológica da camaradagem. A paixão que devia ser desmedida é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade ficam "praticamente" apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas e cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, babanóides, borrabotas, matadores do romance, romanticidas.
Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim da tristeza, o desequilibrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, apancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Por onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, fado, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassado ao pessoal da pantufa e da serenidade.
Amor é amor. É essa a beleza. É esse o perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina.
O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para se perceber. O amor é um estado de quem se sente.
O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe.
Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperante. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não está lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.
A vida é uma coisa e o amor é outra. A vida dura uma vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também."
Miguel Esteves Cardoso, in Expresso
MJNuts
Friday, October 22, 2010
Bruxelas
Não me podia ver, à falta de espelho, mas sei que o meu rosto fez aquela expressão de surpresa agradável e o meu corpo o acompanhou, sobreergueu-se no assento do comboio e as mãos pousaram no vidro.
Que feia que é a Bélgica que os carris atravessam. A Holanda é bonita, sim, apenas monótona. A Bélgica é feia. E não é feia de uma fealdade marcante, que trespassa o espírito e se instala na memória (como a Polónia), é de uma fealdade simples. Não atrai nem deslumbra, mas tem pormenores interessantes. De uma mediania peculiar que revela contentamento com o que se tem.
Nunca tive curiosidade em ir à Bélgica. Quando a minha mãe era nova, passeou Europa fora de roulotte (a cabra! a mim nunca me levou de caravana a lado nenhum!). Disse-me maravilhas da Áustria e da Holanda - que se confirmaram -, falou-me fascinada das diferenças entre a Alemanha Democrática e a Alemanha Federal, também me contou dos belos castelos e paisagens do Luxemburgo e não me lembro do que disse da Suiça. Da Bélgica... "Nhé. É feiota. Não vale muito a pena." E com essa impressão fiquei para todo o sempre, a da Bélgica como um país menor.
E portanto não fui a Bruxelas porque queria, fui a Bruxelas porque era a única forma de rever uma pessoa que me é muito especial, provavelmente num espaço de nove meses. Por isso não tenho grandes recordações de Bruxelas enquanto lugar. Estava mais ocupada a viver Bruxelas no mundo dos sentimentos e das sensações.
Lembro-me da Grand Place, tão embaraçosamente pequena que seriam precisas três dela para encher a Praça do Comércio (mas é bonita, apenas... não é suficiente). Lembro-me do cheiro a waffles, que não me surpreendeu nada porque por cá também os há e eu até prefiro panquecas e crepes... Lembro-me do velhote a tocar viola, a versão magra do Pai Natal, e do quanto gostava de tocar a Tears in Heaven e a Hotel California, uma e outra vez. Lembro-me do corredor que me foi apresentado como sendo parecido a Covent Garden (achei-o mais interessante, por acaso). Lembro-me das cores pastosas e doentes do metro e dos inúmeros anúncios de queijo - porque fromage deve ser a palavra francesa que mais digo. Abat-jour?
Não vou recordar Bruxelas e a Bélgica como locais que me apaixonaram, mas vou sempre recordar-me com carinho dos dias que lá passei.
Das conversas na casa-de-banho. Da mesa no centro do quarto, junto à janela. Do sotaque francês a falar inglês, o meu sotaque preferido. Das buscas eternas por postais decentes. Dos chocolates.
Da noite nos subúrbios, que se pareciam inesperadamente com Londres. Do céu impossivelmente estrelado em que vi-as todas, contei as constelações todas e, mesmo sem querer, reencontrei a Ursa Menor.
Em Bruxelas, parei para pensar sob as estrelas e apercebi-me de muitas coisas. Da prisão das nossas vidas. De como tudo nos pode prender: dinheiro, emprego, estudos, pessoas. De como as maiores amarras somos nós que as atamos nos nossos próprios pulsos. De como arranjamos desculpas e mais desculpas para fazer ou não fazer determinadas coisas. De como nos deixamos ficar em situações não ideais só porque por agora serve. E de como isso se arrasta indefinidamente até que se passam anos em que existimos sem viver. De como o medo controla as nossas vontades, de como a preguiça domina as nossas acções. De como a mente tenta vencer o coração.
Em Bruxelas descobri que a marca estranha que tenho na mão direita desenha, no centro da palma, um coração.
Espero que ele vença sempre.
MJNuts
Thursday, October 21, 2010
Holanda
Depois da explosão de sentidos que foi a Noruega, estava à espera que voltar à capital holandesa tivesse um sabor morno. Mas não. A excitação que me consome sempre que saio de Amsterdam Centraal ainda é a mesma que me alimenta a alma e me arranca sorrisos. É uma espécie de boas-vindas que já é tradição (porque pareço chegar sempre à noite): o céu escuro, as luzes amareladas dos candeeiros, os letreiros das lojas, hotéis e afins, os tons castanhos e laranjas da própria cidade. Os trems e as bicicletas. E já tanta estação de comboio percorri, mas não há igual a Amsterdam Centraal...
Amesterdão, por si só, é sempre uma experiência diferente. Ajuda muito que, sempre que eu lá vá, escolha alojamentos que não lembram a ninguém. A única vez que escapa é a primeira, em que fiquei num hotelzinho simpático que basicamente personificava o que a minha imaginação constrói sempre que reservo cama num hostel ou pensão. A segunda também não é má de todo, fiquei em casa de um colega da escola básica. Mas não o via há anos e crescemos tão diferentes e depois a própria atmosfera da casa deixou em mim uma recordação algo agridoce de um conforto desconfortável.
A terceira vez merecia toda ela um post. Quatro pessoas enfiadas num quarto de um prédio (prédio-casa, é sempre assim na Holanda) pertencente a uma velha alemã cujo marido era judeu. Velha essa que era bastante amorosa, mas muito intrusiva. E que, suponho que sem o saber, tinha a casa repleta de janados, gente perdida da vida, vindos de todos os cantos do Mundo, que estavam em Amesterdão para consumir droga da mais variada até uma qualquer brilhante ideia os libertar daquilo. Vou assumir que partilhar o seu espaço por 10€/noite, na bem cara Amesterdão, vem com esse preço. Os janados, pelo que percebi numa conversa surreal com uma nova-iorquina que estava a tripar em ácido apesar do seu ar perfeitamente normal, muitas vezes não tinham o dinheiro para lhe pagar e o que davam em vez disso à velha era o seu tempo e atenção. Todos os momentos que passei naquela casa foram envoltos num ambiente de bizarria que nunca pensei que existisse na vida real.
E bem, desta vez, fiz CouchSurfing. Isto há sempre formas de viajar barato. A casa tinha 5 andares e 10 estudantes lá enfiados e que posso eu dizer? Limpar não era com eles. E tendo em conta que a minha amiga norueguesa tem traços de obsessão-compulsão no que diz respeito a limpezas e germes, isso deu origem a situações bastante caricatas. "I'm just gonna imagine we're camping in the woods", dizia-me ela. Tínhamos de ir à casa-de-banho juntas porque ela não queria tocar em nada nem queria pousar as coisas em lado nenhum. Foi mais uma óptima oportunidade de bonding entre nós as duas, após sermos colegas de quarto em Viena e estarmos juntas 24/7 na semana da Noruega.
Normalmente, quando vou a Amesterdão, não me preocupo com caminhos, vou atrás de quem percebe mais disso que eu. Mas se o meu sentido de orientação mal dá sinais de vida, o da K. não existe, ponto final. Por isso, fui obrigada a assumir esse papel. E que bem que me soube saber sempre em que direcção ficava a casa ou o Red Light District ou a estação... Só me aumentou a sensação de que Amesterdão também é, cada vez mais, casa. Apesar de nunca lá querer viver. Paradoxos pessoais.
Mas não vos quero falar de Amesterdão. Porque Amesterdão mantém-se a minha cidade preferida.
Quero falar-vos da Holanda. A Holanda, que era um país que eu adorava e admirava. Os prados, as paisagens, os animais, as pessoas.
À quarta vez que por lá passeei, a Holanda não me inspirou minimamente. Fui a Utrecht e adorei, a cidade é maravilhosa. Mas o país em geral, olhando para lá da janela do comboio...
Sempre plano. Sempre verde. Sempre com moinhos ou flores ou ovelhas. Sempre as mesmas casas de madeira. Iguais. Sem um pingo de personalidade.
Mas foi sem dúvida a planura toda que me cansou. Lembro-me de confessar a minha paixão pela Holanda à C., a leader holandesa em Viena, e de ela não perceber porque havia eu de gostar tanto do país. Que era bonito, sim, mas aborrecido. Rotineiro.
Atravessando a Holanda de comboio para conseguir chegar a Bruxelas, percebi o que ela queria dizer. Em duas horas de paisagens, nada vi que me apaixonasse, que me prendesse a respiração, que me apagasse da mente as palavras que insistem em querer explicar o que os olhos vêem.
Era só aquilo. Quilómetros e quilómetros de verde plano, com exactamente as mesmas construções ou animais ou vegetação a adorná-lo. Não me deixei dormir porque também gosto de sentir desencanto, gosto de sentir o tédio e a vulgaridade. Gosto de os saborear para poder dar valor ao que a eles se sobrepõe.
Na minha quarta vez na Holanda também gostei menos das pessoas. As pessoas tão bem vestidas e quase bonitas, muito educadas. As pessoas que ficam ali num meio-termo indeciso da androginia: os rapazes com aquele corte de cabelo comprido, ondulado, penteado para trás; as raparigas de andar patareco. Eles tão delicados que elas parecem brutas sem o ser.
Foi aí que percebi que, dada a minha paixão por Amesterdão, vou sempre gostar de holandeses, apenas dificilmente os poderei vir a amar.
Mas adoro comboios e o céu estava azul e o sol batia-me nos olhos. A Holanda pode não ser o amor da minha vida, mas quer-me bem.
MJNuts
Wednesday, October 20, 2010
Noruega
Este Verão fui leader da delegação portuguesa numa Village do CISV, a Flower Power Village em Viena. Para quem não sabe, o CISV é uma organização internacional que visa trocar experiências entre culturas, com vista à educação para a paz. Building global friendship, dizem eles. Não podiam ter mais razão.
Graças ao CISV, travei amizades com pessoas que vão duma ponta à outra do Mundo e isso, para uma pessoa aventurareira que nem eu, é o melhor que pode haver. E foi assim que arranjei uma amiga na Noruega. Que foi a melhor anfitriã com que se poderia sonhar...
E a Noruega... Não há palavras. Acho que é o país mais lindo em que já pousei o olhar. Suponho que ajude o facto de eu preferir paisagens montanhosas ou com um toque de Inverno.
Toda a semana que passei na Noruega foi uma experiência única. Por estar com uma norueguesa, pude vivenciar o estilo de vida deles, os horários, os hábitos, a alimentação. E que diferente que é ser noruguês!
Eles, assim que chegam a casa, tiram logo os sapatos. Às vezes nem entram em casa, deixam-nos à porta. Jantar para eles é entre as 15h e as 18h, coisa que causou muita picardia entre mim e a minha amiga. Bebem imenso café, a toda a hora. Não é a nossa bica, é uma caneca inteira de café. E outra e mais outra. Parecem os ingleses com o chá. Estão habituados ao Inverno e adoram-no. Quando começa a chegar o tempo escuro, refugiam-se em casa a tricotar. Na Noruega, não é preciso comprar luvas porque eles tricotam-nas uns para os outros. Pareceu-me uma tradição adorável.
A Noruega é cara como nunca vi. Ainda bem que o meu alojamento era gratuito... Não há uma única refeição, no mais manhoso dos restaurantes, que custe menos de 10€. E isso já é ser barato! Mas os preços foram a única coisa da Noruega que não gostei.
Apaixonei-me pelo país assim que aterrei no aeroporto de Oslo. Talvez ainda antes de aterrar. Quando as atribulações aéreas me acordaram e olhei para lá da janela, esperava-me um sem fim de pinheiros na paisagem. Mas achei-os apaixonantes porque o Outono tornava-os todos diferentes: havia os ainda verdes, os vermelhos, os laranjas, os amarelos... Esqueço-me sempre das saudades que tenho do Outono da minha infância. Do Outono que Lisboa ainda tinha.
Estava sol e não senti frio quando pus o pé cá fora. No aeroporto, que é o maior do país, reinava um silêncio sepulcral que me fascinou. Adoro o burburinho dos aeroportos e das estações de comboio. É uma espécie de estática agradável que, na azáfama das nossas mentes, se confunde com silêncio. Mas ali não. Ali o silêncio estava no aeroporto e a estática estava na minha mente. Tratei de a eliminar de imediato para simplesmente apreciar o momento. E sorrir.
Oslo é uma cidade pequena. Eu por acaso até prefiro cidades pequenas para turismo. Não tem nada de especial. É acolhedora, bonita. Tem um fjord que para os habitantes de Oslo há-de ser uma versão do mar onde instalaram uma bonita e pacata marina. E que agradável que é subir àquela colina e sentar nos bancos de jardim, mesmo no topo da encosta, a sentir a brisa e o sol no rosto, a vê-lo reflectir na água lá em baixo.
Oslo tem também o que me parece ser uma das minhas construções humanas preferidas. Talvez a preferida. Mas talvez tenham sido as condições em que a vi.
O parque mais famoso de Oslo é o Vigeland Park. E é o mais famoso porque tem um corredor imenso ladeado de estátuas de nus que culmina numa escadaria onde, central, imponente, está um monólito. Chovia imenso quando lá fui, o parque estava vazio. As estátuas, que deveriam ser cinzentas claras, estavam cinzentas escuras por estarem molhadas. O silêncio norueguês envolvia-me, assim como o Outono.
Normalmente, quando penso em estátuas de nus, lembro-me daquelas estátuas fisicamente perfeitas da época clássica ou do Renascimento (à la David, do Michelangelo). Mas aquelas não. Eram apenas corpos nus, como o meu, como o vosso. Gordos, altos, magros demais, perfeitos, baixos, mal-feitos. Corpos. Aquelas estátuas representavam a humanidade despida de tudo, até da roupa. E, quando a humanidade se despe, só resta o essencial: sentimentos e relações. Passo após passo, olhando para a esquerda ou para a direita, via universos pessoais transformados em estátuas. Pais a brincar com filhos, amantes a discutir, uma criança a fazer birra (que é, estranhamente - digo eu -, a mais famosa das estátuas), mulheres felizes, homens tristes, velhos a chorar a morte, intelectuais a observar o horizonte, casais de homens, casais de mulheres, famílias... Era um espectro infinito de emoções humanas até perder de vista.
Senti-me tocada por tudo aquilo. Falou-me directamente ao coração, de uma forma que costuma chegar tão mais facilmente através de livros, cinema/televisão, música... Parei momentos sem fim diante de uma rapariga, jovem aos meus olhos, com a cabeça enterrada no peito de um rapaz, os punhos contra os peitorais dele. Chorava. Ou a chuva fez-me pensar que sim. Ele abraçava-a como podia e era dor o que li na sua expressão.
Eram só estátuas, mas eu ali vi e senti Arte. E senti-me pequena ao chegar junto do monólito e aperceber-me que não era só mais uma gigantesca pedra fálica. Era um amontoado de corpos nus tão íntimo, tão entrosado, que não se percebia onde um corpo acabava e outro começava. Apeteceu-me trepá-lo e sentar-me no topo, ser mais uma deles. Mas eles eram cinzentos e a minha vida ainda tem cor.
Saí de Oslo para ir a um casamento numa terrinha cujo nome nunca consegui pronunciar, quanto mais escrever. A paisagem norueguesa é... bela. Nem gira, nem linda, nem bonita. É bela, porque é Beleza a tomar forma. As montanhas, os cumes, as casas de madeira. A variação de cor das folhas das árvores, o nevoeiro. Para onde quer que olhasse, o meu cérebro parava por não conseguir expressar-se ante as visões diante dos meus olhos.
Perante a Noruega, deixei de conseguir adjectivar.
O casamento foi uma das experiências mais curiosas da minha vida, mas já noutro lado falei dele e perco-me sempre a tentar expressar o que cá vai dentro. Não percebi nada do que se disse, mas qualquer ser humano é sensível à emoção noutro tom de voz, à linguagem corporal, às canções.
Fiquei a saber que os noivos se conheceram porque, após tirar a carta, a noiva resolveu ir com a melhor amiga fazer aquela brincadeira parva em que se seguem carros aleatórios. Acho que o sorriso parvo que se plantou no meu rosto deve ter durado mais do que o socialmente aconselhável, mas quis lá eu saber. Podia sempre escudar-me na minha nacionalidade e fazê-los pensar que os portugueses são todos idiotas sem grande sentido de etiqueta.
Quando a música finalmente parou (e passava das 3 da madrugada e por lá os casamentos podem durar até de manhã...) e as pessoas começaram a sair, o céu resolveu desabar e a neve caiu. Foram as primeiras neves do norte da Noruega desde que o Verão chegou ao fim. Foi a terceira vez que vi nevar na minha vida. Não há palavras para descrever a criança dentro de mim que ficou histérica de alegria por estar ali, naquele momento, com aquele simbolismo.
Os meus últimos dois dias na Noruega foram passados em Tromsø, a cidade onde a minha amiga estudou. Tromsø é uma ilha no meio de um fjord. Uma ilha de casas baixas e passeios curtos, que os autocarros facilmente atravessam de uma ponta à outra. Com a neve, as estradas estavam brancas assim como os tectos das casas de madeira. Eu adoro flocos de neve a cair, pois é impossível a minha imaginação pintar quadros mais bonitos que esse...
Não consigo mesmo pôr a Noruega por palavras.
À noite, parou de nevar e o céu ficou sem nuvens. Ao longe, na outra margem, conseguia ver as luzes das casas entrecortadas na paisagem e os cumes brancos de neve das montanhas.
Parada no meio da neve, enregelada, com os ténis enterrados e molhados, olhando para cima, vi o céu inteiro. Um paraíso de céu. E a Noruega ofereceu-me de presente a Aurora Boreal, ainda tímida, horas antes de eu ter de lhe dizer adeus.
MJNuts
Tuesday, October 19, 2010
Londres
Fui para Londres com três objectivos: aprender a estar sozinha e a ser independente, fazer amigos pelo mundo fora para alimentar o meu vício de viagens e (vergonhosamente) ter algo com alguém de outra nacionalidade. Atingi os três. O último só me serviu para o ego, o segundo abre-me ainda mais um coração que já de si não se sabe fechar e o primeiro ajudou-me a tornar-me quem eu sou hoje. Foi o principal motivo que me fez simplesmente ir. Para completar o panorama, acabei o curso. Lá fora. Em termos pessoais, Londres diz-me que eu posso fazer tudo o que quiser se me der ao trabalho disso.
No meu ano em Londres, cresci mais do que nos três anos anteriores juntos. Tive um quarto meu, um quarto sem segredos, forrado a postais e poemas e posters. Um quarto que era um refúgio.
Abandonei esse quarto pela aventura e pela avareza e passei quase dois meses a dormir em chão e sacos-cama e sofás e camas por essa Londres fora. Vagueei de madrugada pela cidade, a ver o Sol nascer antes de conseguir encontrar almofada onde pousar a cabeça.
Atravessei a Waterloo Bridge mais vezes do que é possível contar e cumprimentei mais condutores de night buses do que me meti em double-deckers enquanto o sol brilhava.
Fiz vida de parque, à falta de praia. Deitada em cobertores ou toalhas de piquenique. A ler, a conversar, a sorver o sol como se fosse o bem mais precioso.
Vi uma lista infindável de peças e musicais. Vi o Wicked quatro vezes e deixei-o ser a banda sonora do meu ano.
Descobri barzinhos e pubs secretos, onde conversei horas a fio com quem me quis acompanhar. Dancei tantas horas de tantas noites que as contas perfazem dias. Dias da minha Londres passados a dançar.
"When you dance... It's like you're making love to music."
Mas a verdade é que, até este mês, guardava Londres cá dentro com alguma apreensão. Não tive aquele Erasmus impossivelmente louco que toda a gente parece descrever e isso fazia-me sentir que algo estava errado comigo. Como se não bastasse, pela primeira vez na vida, o meu espírito optimista e despreocupado que está sempre pronto para amar gentes sem medo de sair magoado foi quebrado. Foi quebrado inesperadamente e levou muito tempo a sarar essa ferida. Não sei se já sarou ou se a cicatriz tem duas semanas de idade, porque até voltar a Londres, eu tinha receio de voltar ali. De reencontrar aquelas ruas, aqueles lugares, aquelas sensações familiares. Tinha pavor de voltar a Londres e de instintivamente procurar quem só me trouxe dor, mesmo sabendo racionalmente que agora há um oceano a separar-nos.
Mas eu sou eu e voltei a Londres à mesma. Porque fiz mais amigos do que tive agruras, porque esses amigos se iam reunir. E lá fui, que nem filho pródigo a regressar a casa. Sozinha no avião. É impressionante o quão desenrascada fiquei nestas coisas de viagens (para qualquer lado!) em 2009 e 2010.
Foi imensamente estranho voltar a Londres... Porque parecia que nunca tinha de lá saído.
As pontes estão no mesmo sítio, o Big Ben continua a ser uma desilusão. O metro ainda é escuro e opressivo, os autocarros continuam brilhantes. Trafalgar Square ainda é a mais acolhedora visão nocturna que posso ter ao sair de uma discoteca. Os DVDs e CDs mantêm-se incrivelmente baratos na HMV. As livrarias não deixaram de expôr obras e obras infinitas numa língua que eu consigo entender. Aqueles cafés e Neros onde tantas horas passei, sozinha, a ler ou escrever, continuam a dar-me um chocolate quente que sabe a céu. Os meus spots ainda lá estão, à espera que eu lá vá sentar-me, sentir, viver.
E as pessoas, Deus, as pessoas... Como foi maravilhoso rever toda a gente! Como foi fantástico estar outra vez sob o tecto da Lili. Como a V. me voltou a surpreender, uma e outra vez, só por ser ela (porque já me tinha esquecido...). Como a L. continua tagarela e tão única nas suas peculiaridades. Como eu e a Frenchie não esquecemos o nosso hábito inato de estarmo-nos sempre a picar e a gozar. Como a C. está tão perto do meu coração. Rever o Luigi... Só faltou o meu Nabo. E que falta essa... Nunca mais regresso a Londres, enquanto ele lá viver, sem ele lá estar...
Passou-se o Verão e nunca senti saudades de Londres. Mantive o contacto com as pessoas, mas não senti falta do meu ano em Londres. Não tive ressaca pós-Erasmus.
Mas quando voltei... Quando voltei, apercebi-me. Do bem que Londres me fez. Do mundo que agora tenho cá dentro. Da coragem. Da recém-descoberta capacidade de estar sozinha e fazer as coisas sozinha. Da introspecção. Da quanto a minha força está no que socialmente pode ser considerado frágil... Do quanto prezo a minha companhia.
Londres é uma casa para mim. Londres tornou-se também a minha cidade.
Quanto mais viajo, mais gosto da sensação de lar.
MJNuts
Friday, October 15, 2010
A História do Canal
Nunca quis saber da obsessão com as câmaras e as fotografias, mas alinho na brincadeira. É giro na altura de ver e recordar. Não estou em mim e olho à volta e para o céu como se fosse uma visão espantosa e impossivelmente nova. Nem ligo à ideia de pousar a máquina para lá da plataforma, depois da água.
Só associo quando uma mão me agarra e vejo o ar de pânico dele, já numa posição que invariavelmente indica que vai cair e não tem como se safar disso. Escusava era de me levar a mim também...
Sinto a força do embate na água ao longo de todo o comprimento do meu corpo e a chapa só não dói porque é Abril e ainda faz frio em Amesterdão e estou enterrada em camisolas e casacos.
Sinto uma onda de frustração abater-se sobre mim quando os meus olhos se abrem e só vejo aquela cor aguada e verdosa a rodear-me. Caí de barriga para baixo. Nem acredito que caí a um canal... A roupa pesa-me, o que não ajuda à irritação que já se instalou. Estou tão segura da estupidez do acontecimento que nem me lembro dele. Limito-me a esbracejar à cão até ao triângulo para voltar a terra firme. Mas o triângulo, falso, é uma plataforma flutuante e, sem onde apoiar os pés e demasiado pesada para me erguer decentemente, bato uma vez com a cabeça antes de me aperceber que vou precisar de mais esforço para conseguir sair dali. Mas estou segura, estou agarrada. Vejo-as lá em cima, petrificadas, estupefactas, também incrédulas com o que acabou de acontecer.
À minha direita, oiço de repente aquele som inconfundível de alguém a sair da água, numa inspiração ruidosa e sôfrega.
"A Maria! Agarrem a Maria!"
É a voz dele. Pois claro, ele também caiu. O grito aflitivo parece libertá-las do seu torpor, pois correm na minha direcção. Sinto-o a empurrar-me para cima como se a vida dele, não, como se a minha vida dependesse disso e, com elas a puxarem-me pelos braços, consigo encontrar uma posição que me permite sair sozinha de dentro de água, coisa que faço sem mais delongas. Fico parada, em pé, a pingar miseravelmente, e a fitá-las, sem dúvida que com a mesma expressão de descrença que lhes leio no rosto. Isto não está a acontecer.
Oiço-o sair da água atrás de mim, sozinho, sem precisar de ajuda. É impressionante a força que aquele rapaz tem. O pingar da água é ainda mais evidente nele do que em mim, talvez porque a ele posso vê-lo por completo, enquanto a minha visão de mim é sempre aquele olhar para baixo que nunca conseguirá ver a cabeça sem a ajuda de um espelho. Até do queixo a água lhe pinga, por alguns instantes.
Respiramos sonoramente durante uns segundos, sem encontrar palavras. Depois, eu não consigo evitar sorrir e por fim solto uma gargalhada. Foda-se, caí a um canal em Amesterdão!
A minha gargalhada provoca o riso também nelas e é como se a tensão do momento se desanuviasse um pouco. Verificamos as coisas que temos, completamente encharcadas. O telemóvel já se foi, assim como a máquina. O conteúdo da carteira talvez ainda se safe, depois de seco. Os objectos que estavam nos bolsos dos casacos flutuam agora ao longo do canal.
Ele começa a tremer. Lembro-me novamente que é Abril e ainda faz frio em Amesterdão. Temos de voltar para casa, que fica a 20 minutos dali, a pé. Elas insistem que vamos de trem, que assim podemos ficar doentes. Mas eu e ele sempre fomos forretas, além de teimosos, e Amesterdão, para nós, não é cidade onde se ande de transportes.
Pomo-nos a caminho, a um passo tão rápido que está muito próximo de ser corrida. Elas ficam para trás. Avançamos lado a lado e oiço a respiração ofegante dele tão claramente como oiço cada passo que ele dá. Trocamos algumas palavras.
Ainda não estou em mim.
Ele estende-me a mão. Aberta, grande, trémula. Eu agarro-a sem hesitar e é a partir desse momento que se nota que ele consegue andar bem mais depressa que eu. Vou sempre um pouco atrás, com ele a puxar-me, mas a minha mão presa na dele diz-me que vou onde ele for e que separados é que não vamos a lado nenhum.
Sinto o frio dele. Está a fazer uma força hercúlea para aguentar. Pergunto-me se, no meu estado normal, teria resistência suficiente para aguentar aquilo tudo. Quero acreditar que sim. Mas, no estado em que estou, não sinto frio nenhum, sinto só o desconforto da roupa molhada sob o corpo na húmida Amesterdão. As calças de ganga contra a pele parecem fazer-me cortes nas pernas a cada passada e isso permite-me saber que, tal como ele, e mesmo que sem frio, não aguentarei muito mais tempo.
Atravessamos as pontes sobre um e outro e mais outro canal. Parecem não acabar. Nunca um regresso me pareceu tão longo. Apesar de tudo, sinto-me bem. Estou viva e tenho-o ao meu lado. Nunca os edíficios da cidade me pareceram tão belos e familiares. O céu cinzento não é opressivo, é bonito. E, por uma vez, deixa-nos percorrer o nosso caminho debaixo dele sem nos cobrir de chuva. Será que faria diferença?
Andamos, andamos, andamos... Não me lembro de a casa ficar tão longe. Os meus sentidos começam a ficar desatentos e só me consigo concentrar na força com que as nossas mãos se apertam, na respiração pesada e regular dele, nos meus passos mecânicos, um atrás do outro. Ele tem os dentes cerrados, o olhar fixo. Não conseguiria falar mesmo que quisesse. Mas eu sou leve e ainda consigo.
"Estamos quase, só mais um bocadinho..."
Chegamos finalmente. Ele atrapalha-se a pôr a chave na porta. Treme, experimenta, está irritado, estamos quase! Conseguimos. E corremos escadas acima sem nos preocuparmos em descalçar. Só queremos o conforto e um banho quente.
Ouvimos os gritos da velha, mas já estamos na casa-de-banho a despir-nos e esta não é a altura para nos preocuparmos com ela e com as suas regras absurdas.
A água quente escorre-nos pelos corpos nus e até se vê vapor a soltar-se do gelo da nossa pele. Sorrimos, parvos, felizes, a adorarmo-nos assim, como somos. Vivos. Vibrantes.
Mas a velha bate à porta e grita, histérica. Só pode estar um de cada vez na casa-de-banho. E então ele sai, nu, frágil, pequeno.
Aquele que deveria ser o melhor banho das nossas vidas termina abruptamente da pior forma. Sozinha, sabendo-o ao frio, tomo o duche mais rápido que alguma vez me lembro de tomar.
Oiço-o lá fora, do outro lado da porta, a tentar explicar a situação. Antes de sair, olho-me ao espelho e sorrio. Poesia.
Aconteceram mais coisas, muitas mais, ao canal associadas. Mas isto é o que escolho recordar, porque até ao momento em que fiquei seca, ele amou-me duas vezes: tirou-me do canal primeiro pensando que eu corria perigo quando ele até estivera em maior risco; e deixou-me na banheira ante as ameaças da velha, para terminar o banho primeiro, quando ele tinha estado com mais frio que eu.
E por isso eu posso ser mais alerta e até mais disponível no dia-a-dia e volta e meia ressentir-me porque precisava de um pouco mais de atenção, mas é impossível esquecer-me da certeza de um amor que sabe o que vale e que vai até ao fim.
Damos igualmente, cada um à sua maneira.
Devo-te muito de quem sou. E amo-te.
MJNuts
Que possamos partilhar novas aventuras nos teus 21.
Wednesday, October 13, 2010
Monday, October 11, 2010
Becoming
Será que ainda vou a tempo? Será que ainda vou a tempo de ser o meu melhor Eu? O meu Eu mais Eu? Será que ainda consigo libertar-me da languidez e erguer-me das areias movediças do marasmo? Vinte e quatros anos e todos os dias descubro mais caminho a trilhar, mais noções inesperadas, mais barro a trabalhar em mim… Como uma casa para sempre inacabada, em constante renovação, os meus quartos expandem-se e mirram, encontro espelhos em corredores que não sabiam que existiam, clarabóias e lareiras em barracões, abismos entre o soalho de madeira que jurava ter consertado.
Sou fonte de energia em bruto que não sei converter em movimento, em expansão, em evolução. Não sei como queimar o meu carvão, iniciar a minha revolução industrial. Queimo por dentro, consumindo as paredes dessa casa, com a certeza de que caminho inexoravelmente para o meu fim, para a minha supernova. E mirro, como papel a queimar, colapso sobre mim mesma e desapareço. E é tanto (mas tão pouco!) para ver, para conhecer, para ser. E o meu lado mesquinho conquista-me e as minhas inseguranças impedem-me de ser mais eu. Fico presa nesta crisálida, nem verme nem ser alado. Disforme. A meio. Inacabada. Não realizada.
A minha casa é uma prisão. Sou presidiário, guarda, grade. Chave! Mas onde anda ela? Tantas são as gavetas, as portas, os armários! Já para não falar na cave…
E é o fluxo constante de dor. Alicerces da minha existência, que enquanto expostos, sem estuque ou cimento que os proteja, estão constantemente à mercê das intempéries, do alheio, do acaso, dos outros e do seu intento destrutivo… ou boas intenções.
Seria mais fácil com um construtor dedicado? Uns dias penso que sim, outros dias grito que a alvura das minhas paredes só a mim me cabe erguer, para que, aí sim, outro entre elas possa encontrar conforto e, enroscado em frente à lareira, atiçar o meu aconchego, aquecer a minha casa, com lenha de árvores exóticas, à qual vou estranhar o sabor.
Wednesday, October 6, 2010
Musicalmente Caminhando
Neste momento, estou numa fase bastante musical. Continuo a ser a inútil do costume para decorar letras, mas estou numa boa altura para experimentar novos artistas e conhecer novas músicas.
O que aqui venho partilhar convosco, contudo, é uma curta lista daquelas músicas que sabe mesmo bem ouvir quando se está a caminhar pela rua. Sabem, quando o vosso mp3 resolve presentear-vos com algo que vos traz um sorriso ao rosto ou que dá um andar mais decidido ao vosso passo ou que vos faz soltar uns quantos movimentos de dança incontroláveis? E claro que há aquelas canções que vos fazem olhar à vossa volta como se o Mundo tivesse ganho outras cores...
Eis o meu top 10 do momento:
1. The Verve - Bittersweet Symphony (esta é um autêntico hino de andar na rua... até o vídeo o demonstra!)
2. B.O.B. feat Hayley Williams - Airplanes (não, não gosto de rap/hip-hop/whatever, mas gosto do que ela diz e da forma como o canta)
3. Lily Allen - The Fear
4. Lady Gaga - Alejandro (raça da mulher que não há forma de eu não dançar quando esta ou a Bad Romance me aparecem)
5. Isobel Campbell - Loving Hannah (é a dos sorrisos, esta aqui)
6. Delfins - Marcha dos Desalinhados ("Ninguém sabe para onde eu vou...")
7. The Beatles - Hey Jude (muito boa para eu ir lip-singing rua fora, enquanto me sinto mais motivada)
8. Pearl Jam - Given to Fly (yeah, I really wish I could just fly instead of having to walk everywhere)
9. Death Cab for Cutie - Transatlanticism (há letras que mexem comigo, nada a fazer... principalmente se tiver o Mundo à minha frente)
10. The White Stripes - Jolene (ah, o poder disto...)
Como tudo na vida, as músicas da caminhada vão mudando. E há mais além destas, claro. Mas que estas fazem muito bem o seu trabalho, isso sem sombra de dúvida!
Mais alguém tem pancas musicais para andar pela rua ou sou só eu?
MJNuts
Saturday, October 2, 2010
Florence+The Machine
E estou a contar-vos isto porquê? Porque, das primeiras vezes que ouvi Florence+The Machine, a música que me era presenteada era a You've Got the Love, que me custou e muito a gostar. Mas, passado o Verão inteiro, lá aprendi a apreciá-la e, juntamente com a Dog Days Are Over, fez-me ter curiosidade de conhecer melhor o trabalho da artista. Que foi o que fiz, muito recentemente. A senhora já nem anda tão na berra nem nada, cheguei atrasada à adoração, enfim.
Contudo, para minha surpresa, e apesar do pouco tempo de audição, as músicas da Florence revelaram expressar uma parte de quem sou. Se a Tori Amos expressa as obscuridades da minha psique e a Lady Gaga, enquanto artista, me fez valorizar muito mais o género feminino e acreditar na sua força, a Florence veio trazer-me luz sobre a minha forma de estar num aspecto particular da minha vida...
There's a drumming noise inside my head
That starts when you're around
I swear that you could hear it
It makes such an all mighty sound
I took the stars from my eyes, and then I made a map
And knew that somehow I could find my way back
Then I heard your heart beating, you were in the darkness too
So I stayed in the darkness with you
I'm going out
I'm gonna drink myself to death
And in the crowd
I see you with someone else
I brace myself
'cause I know it's going to hurt
But I like to think at least things can't get any worse
Seems that I have been held in some dreaming state
A tourist in the waking world, never quite awake
No kiss, no gentle word could wake me from this slumber
Until I realized that it was you who held me under
(...)
No more dreaming like a girl so in love, so in love
No more dreaming like a girl so in love with the wrong one
A Florence expressa demasiado bem a minha forma de ser e estar no amor... E ouvindo estas canções que não devem nada à fabulosidade musical, não consigo deixar de me sentir perturbada por ser assim. Por sentir tão intensamente, por me entregar tão completamente, por me deixar consumir tão absolutamente, por dar tanto e estupidamente nunca pedir nada em troca, uma e outra e outra vez...
Já chega.
Mas Florence+The Machine vale bem a pena, musicalmente falando, por isso aqui fica o conselho.
MJNuts (presenting Drumming Song, Cosmic Love, Hurricane Drunk, Blinding)