Foi o meu telemóvel que me informou que tinha chegado à Bélgica. A horas indecentes da manhã (para um Sábado português, pelo menos), recebi uma mensagem. Estranhei, tirei o bicho do bolso e era a Vodafone, simpaticamente a avisar-me que as chamadas ali custam X se efectuadas e Y se recebidas.
Não me podia ver, à falta de espelho, mas sei que o meu rosto fez aquela expressão de surpresa agradável e o meu corpo o acompanhou, sobreergueu-se no assento do comboio e as mãos pousaram no vidro.
Que feia que é a Bélgica que os carris atravessam. A Holanda é bonita, sim, apenas monótona. A Bélgica é feia. E não é feia de uma fealdade marcante, que trespassa o espírito e se instala na memória (como a Polónia), é de uma fealdade simples. Não atrai nem deslumbra, mas tem pormenores interessantes. De uma mediania peculiar que revela contentamento com o que se tem.
Nunca tive curiosidade em ir à Bélgica. Quando a minha mãe era nova, passeou Europa fora de roulotte (a cabra! a mim nunca me levou de caravana a lado nenhum!). Disse-me maravilhas da Áustria e da Holanda - que se confirmaram -, falou-me fascinada das diferenças entre a Alemanha Democrática e a Alemanha Federal, também me contou dos belos castelos e paisagens do Luxemburgo e não me lembro do que disse da Suiça. Da Bélgica... "Nhé. É feiota. Não vale muito a pena." E com essa impressão fiquei para todo o sempre, a da Bélgica como um país menor.
E portanto não fui a Bruxelas porque queria, fui a Bruxelas porque era a única forma de rever uma pessoa que me é muito especial, provavelmente num espaço de nove meses. Por isso não tenho grandes recordações de Bruxelas enquanto lugar. Estava mais ocupada a viver Bruxelas no mundo dos sentimentos e das sensações.
Lembro-me da Grand Place, tão embaraçosamente pequena que seriam precisas três dela para encher a Praça do Comércio (mas é bonita, apenas... não é suficiente). Lembro-me do cheiro a waffles, que não me surpreendeu nada porque por cá também os há e eu até prefiro panquecas e crepes... Lembro-me do velhote a tocar viola, a versão magra do Pai Natal, e do quanto gostava de tocar a Tears in Heaven e a Hotel California, uma e outra vez. Lembro-me do corredor que me foi apresentado como sendo parecido a Covent Garden (achei-o mais interessante, por acaso). Lembro-me das cores pastosas e doentes do metro e dos inúmeros anúncios de queijo - porque fromage deve ser a palavra francesa que mais digo. Abat-jour?
Não vou recordar Bruxelas e a Bélgica como locais que me apaixonaram, mas vou sempre recordar-me com carinho dos dias que lá passei.
Das conversas na casa-de-banho. Da mesa no centro do quarto, junto à janela. Do sotaque francês a falar inglês, o meu sotaque preferido. Das buscas eternas por postais decentes. Dos chocolates.
Da noite nos subúrbios, que se pareciam inesperadamente com Londres. Do céu impossivelmente estrelado em que vi-as todas, contei as constelações todas e, mesmo sem querer, reencontrei a Ursa Menor.
Em Bruxelas, parei para pensar sob as estrelas e apercebi-me de muitas coisas. Da prisão das nossas vidas. De como tudo nos pode prender: dinheiro, emprego, estudos, pessoas. De como as maiores amarras somos nós que as atamos nos nossos próprios pulsos. De como arranjamos desculpas e mais desculpas para fazer ou não fazer determinadas coisas. De como nos deixamos ficar em situações não ideais só porque por agora serve. E de como isso se arrasta indefinidamente até que se passam anos em que existimos sem viver. De como o medo controla as nossas vontades, de como a preguiça domina as nossas acções. De como a mente tenta vencer o coração.
Em Bruxelas descobri que a marca estranha que tenho na mão direita desenha, no centro da palma, um coração.
Espero que ele vença sempre.
MJNuts
Às vezes frequentava a sociedade
6 years ago
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