Friday, October 15, 2010

A História do Canal

É incrivelmente idiota. Nós somos todos incrivelmente idiotas. O dia está chuvoso e nublado, a atmosfera carregada de humidade. Mesmo de ténis, o mármore é escorregadio. Mas lá descemos as escadas e aproximamo-nos cada vez mais do vértice do triângulo, sem qualquer noção do perigo.

Nunca quis saber da obsessão com as câmaras e as fotografias, mas alinho na brincadeira. É giro na altura de ver e recordar. Não estou em mim e olho à volta e para o céu como se fosse uma visão espantosa e impossivelmente nova. Nem ligo à ideia de pousar a máquina para lá da plataforma, depois da água.

Só associo quando uma mão me agarra e vejo o ar de pânico dele, já numa posição que invariavelmente indica que vai cair e não tem como se safar disso. Escusava era de me levar a mim também...

Sinto a força do embate na água ao longo de todo o comprimento do meu corpo e a chapa só não dói porque é Abril e ainda faz frio em Amesterdão e estou enterrada em camisolas e casacos.

Sinto uma onda de frustração abater-se sobre mim quando os meus olhos se abrem e só vejo aquela cor aguada e verdosa a rodear-me. Caí de barriga para baixo. Nem acredito que caí a um canal... A roupa pesa-me, o que não ajuda à irritação que já se instalou. Estou tão segura da estupidez do acontecimento que nem me lembro dele. Limito-me a esbracejar à cão até ao triângulo para voltar a terra firme. Mas o triângulo, falso, é uma plataforma flutuante e, sem onde apoiar os pés e demasiado pesada para me erguer decentemente, bato uma vez com a cabeça antes de me aperceber que vou precisar de mais esforço para conseguir sair dali. Mas estou segura, estou agarrada. Vejo-as lá em cima, petrificadas, estupefactas, também incrédulas com o que acabou de acontecer.

À minha direita, oiço de repente aquele som inconfundível de alguém a sair da água, numa inspiração ruidosa e sôfrega.

"A Maria! Agarrem a Maria!"

É a voz dele. Pois claro, ele também caiu. O grito aflitivo parece libertá-las do seu torpor, pois correm na minha direcção. Sinto-o a empurrar-me para cima como se a vida dele, não, como se a minha vida dependesse disso e, com elas a puxarem-me pelos braços, consigo encontrar uma posição que me permite sair sozinha de dentro de água, coisa que faço sem mais delongas. Fico parada, em pé, a pingar miseravelmente, e a fitá-las, sem dúvida que com a mesma expressão de descrença que lhes leio no rosto. Isto não está a acontecer.

Oiço-o sair da água atrás de mim, sozinho, sem precisar de ajuda. É impressionante a força que aquele rapaz tem. O pingar da água é ainda mais evidente nele do que em mim, talvez porque a ele posso vê-lo por completo, enquanto a minha visão de mim é sempre aquele olhar para baixo que nunca conseguirá ver a cabeça sem a ajuda de um espelho. Até do queixo a água lhe pinga, por alguns instantes.

Respiramos sonoramente durante uns segundos, sem encontrar palavras. Depois, eu não consigo evitar sorrir e por fim solto uma gargalhada. Foda-se, caí a um canal em Amesterdão!

A minha gargalhada provoca o riso também nelas e é como se a tensão do momento se desanuviasse um pouco. Verificamos as coisas que temos, completamente encharcadas. O telemóvel já se foi, assim como a máquina. O conteúdo da carteira talvez ainda se safe, depois de seco. Os objectos que estavam nos bolsos dos casacos flutuam agora ao longo do canal.

Ele começa a tremer. Lembro-me novamente que é Abril e ainda faz frio em Amesterdão. Temos de voltar para casa, que fica a 20 minutos dali, a pé. Elas insistem que vamos de trem, que assim podemos ficar doentes. Mas eu e ele sempre fomos forretas, além de teimosos, e Amesterdão, para nós, não é cidade onde se ande de transportes.

Pomo-nos a caminho, a um passo tão rápido que está muito próximo de ser corrida. Elas ficam para trás. Avançamos lado a lado e oiço a respiração ofegante dele tão claramente como oiço cada passo que ele dá. Trocamos algumas palavras.

Ainda não estou em mim.

Ele estende-me a mão. Aberta, grande, trémula. Eu agarro-a sem hesitar e é a partir desse momento que se nota que ele consegue andar bem mais depressa que eu. Vou sempre um pouco atrás, com ele a puxar-me, mas a minha mão presa na dele diz-me que vou onde ele for e que separados é que não vamos a lado nenhum.

Sinto o frio dele. Está a fazer uma força hercúlea para aguentar. Pergunto-me se, no meu estado normal, teria resistência suficiente para aguentar aquilo tudo. Quero acreditar que sim. Mas, no estado em que estou, não sinto frio nenhum, sinto só o desconforto da roupa molhada sob o corpo na húmida Amesterdão. As calças de ganga contra a pele parecem fazer-me cortes nas pernas a cada passada e isso permite-me saber que, tal como ele, e mesmo que sem frio, não aguentarei muito mais tempo.

Atravessamos as pontes sobre um e outro e mais outro canal. Parecem não acabar. Nunca um regresso me pareceu tão longo. Apesar de tudo, sinto-me bem. Estou viva e tenho-o ao meu lado. Nunca os edíficios da cidade me pareceram tão belos e familiares. O céu cinzento não é opressivo, é bonito. E, por uma vez, deixa-nos percorrer o nosso caminho debaixo dele sem nos cobrir de chuva. Será que faria diferença?

Andamos, andamos, andamos... Não me lembro de a casa ficar tão longe. Os meus sentidos começam a ficar desatentos e só me consigo concentrar na força com que as nossas mãos se apertam, na respiração pesada e regular dele, nos meus passos mecânicos, um atrás do outro. Ele tem os dentes cerrados, o olhar fixo. Não conseguiria falar mesmo que quisesse. Mas eu sou leve e ainda consigo.

"Estamos quase, só mais um bocadinho..."

Chegamos finalmente. Ele atrapalha-se a pôr a chave na porta. Treme, experimenta, está irritado, estamos quase! Conseguimos. E corremos escadas acima sem nos preocuparmos em descalçar. Só queremos o conforto e um banho quente.

Ouvimos os gritos da velha, mas já estamos na casa-de-banho a despir-nos e esta não é a altura para nos preocuparmos com ela e com as suas regras absurdas.

A água quente escorre-nos pelos corpos nus e até se vê vapor a soltar-se do gelo da nossa pele. Sorrimos, parvos, felizes, a adorarmo-nos assim, como somos. Vivos. Vibrantes.

Mas a velha bate à porta e grita, histérica. Só pode estar um de cada vez na casa-de-banho. E então ele sai, nu, frágil, pequeno.

Aquele que deveria ser o melhor banho das nossas vidas termina abruptamente da pior forma. Sozinha, sabendo-o ao frio, tomo o duche mais rápido que alguma vez me lembro de tomar.

Oiço-o lá fora, do outro lado da porta, a tentar explicar a situação. Antes de sair, olho-me ao espelho e sorrio. Poesia.

Aconteceram mais coisas, muitas mais, ao canal associadas. Mas isto é o que escolho recordar, porque até ao momento em que fiquei seca, ele amou-me duas vezes: tirou-me do canal primeiro pensando que eu corria perigo quando ele até estivera em maior risco; e deixou-me na banheira ante as ameaças da velha, para terminar o banho primeiro, quando ele tinha estado com mais frio que eu.

E por isso eu posso ser mais alerta e até mais disponível no dia-a-dia e volta e meia ressentir-me porque precisava de um pouco mais de atenção, mas é impossível esquecer-me da certeza de um amor que sabe o que vale e que vai até ao fim.

Damos igualmente, cada um à sua maneira.

Devo-te muito de quem sou. E amo-te.

MJNuts


Que possamos partilhar novas aventuras nos teus 21.

1 comment:

André Pereira said...

Um dos teus melhores posts, enternecedores e fez-me querer ir a Amesterdão cair em canais.

Boa MJ :D