Escrevo este post mais para mim, porque preciso de o escrever, e na verdade quase desejo que ninguém o leia. Por isso vou, logo após o acabar, juntar mais uma compilação de postais e deixar que seja isso o que as pessoas vejam primeiro quando carregam no link deste blog.
Escrevo-o sem querer que o leiam porque
Fingersmith, livro e minissérie/filme, foi para mim uma experiência e não quero que a vossa experiência seja arruinada pelos pormenores que não vou poder deixar de referir, pelas revelações de
twists a que não posso fugir se me quero fazer entender...
E então aviso...
SPOILERS vão estar por todo o lado, porque eu tenho simplesmente de deitar
Fingersmith cá para fora... Se há algures na vossa mente a possibilidade de alguma vez verem o filme ou lerem o livro, escusam de gastar a visão através das restantes linhas. Pelo menos por ora. Até porque se não leram o livro ou viram o filme, não vão perceber nada, parece-me.
Disse
aqui que provavelmente ainda havia muito deslumbramento no meu discurso. Mas desde então duas ou três semanas passaram e não é poucas vezes que dou comigo a pensar na Sue Trinder ou na Maud Lilly e em como foi aquilo acontecer-lhes... Foram tantas as vezes, que mandei vir o DVD da
Amazon... Tantas as vezes, que tive de mandar vir o livro também. Tantas as vezes, que acabei por desesperar na espera e encontrar o .pdf da obra algures na net e foi assim que comecei a leitura.
É um bom livro. Não é perfeito, mas é realmente bom, tanto que foi nomeado para dois importantes prémios da Literatura internacional (o Orange Prize e o Man Booker Prize) e ganhou um outro (CWA Ellis Peters Dagger).
Tal como a sua adaptação, começa a um ritmo agradável e moderado, embora irresistível, mas acaba por precipitar-se para o seu final. Isto acaba por ser menos notório no livro, pois apesar da acção se desencadear de forma quase sedenta a partir de certo ponto, as palavras serão sempre palavras e são lentas na sua essência. Descrevem, expõem, dão-nos a entender coisas que nem sempre são subtis às imagens.
Ao contrário da sua adaptação, o livro pode trazer um certo desespero ao leitor. Porque não é no tempo real da acção. Ou antes, às vezes é, mas volta para trás para depois avançar novamente. Sarah Waters apresenta-nos dois pontos de vista e, como tal, temos de saber ambas as versões da história. E se começamos com a infância de Sue e acabamos a Primeira Parte com o doloroso reconhecimento de que ela afinal era apenas uma peça no jogo traiçoeiro de Gentleman... Passamos logo a seguir para longas páginas da infância de Maud e dos seus pensamentos sobre toda a acção anterior, antes contada pelos olhos de Sue. Confesso-me leitora muito impaciente, por isso até calhou bem ter visto primeiro o filme, senão todas as páginas do ponto de vista de Maud - belíssimas, por sinal, cheias de subtileza, de ódio, de desejo, de requintes de malvadez, de altruísmo inesperado, - me teriam passado ao lado na angústia de querer saber o que está
a seguir, não o que já sabia.
O filme não tem este problema. Como já todos sabemos, estas coisas de andar para trás e para a frente podem dificultar a vida a argumentistas, realizadores, actores, espectadores, é uma dor de cabeça! Assim, a partir do momento oportuno, as perspectivas de Maud e Sue são mostradas mano a mano. O que uma está a viver enquanto a outra está a viver qualquer outra coisa.
O livro não tem as interpretações fabulosas de Elaine Cassidy enquanto Maud Lilly e de Sally Hawkins como Sue. Não tem a beleza irresistível de Rupert Evans no papel de Gentleman. Mas bem, teve-me a mim a imaginá-los nas palavras escritas, o que não é dizer pouco.
Há cerca de 3 semanas atrás, quando vi o filme, gostei imenso da Sue, adorei a Maud. Hoje, adoro a Sue e a Maud desperta em mim vários sentimentos, deixa-me pensativa em muitos aspectos. As pessoas têm sempre tendência a preferir a Sue, do que me apercebi de quem consegui convencer a ver o filme (obrigada!), mas sinto que a forma como a Maud foi escrita para a adaptação da BBC não é fidedigna. Paradoxalmente, tenho a
certeza que as pessoas iriam preteri-la ainda mais se ela tivesse sido retratada tal como é no livro.
Porque a Maud, independentemente do magnífico trabalho de Elaine Cassidy na adaptação (e sim, eu reparei em gestos quase imperceptíveis que talvez tenham passado despercebidos a muita gente), vive de subtilezas tão ténues que uma pessoa quase tem de reler aquelas linhas para se certificar que entendeu bem. Porque a Maud no livro não é apenas uma pobre coitada que um tio devasso condenou a uma vida limitada de prisão domiciliária. A Maud da obra de Sarah Waters revoltou-se com a sua situação e criou as suas próprias defesas. Ela não chora a morte da mãe... Ela culpa-a por ter morrido e a ter deixado com aquele destino miserável! Ela não é dócil nem doce nem se meteu num esquema tão complicado, apenas porque quer fugir e no processo só uma pessoa insignificante (a Sue, it turns out) é sacrificada. Não, ela cresceu a odiar as pessoas que a fazem lembrar dela, a provocar e mal tratar as aias. Ela cresceu na repressão de afastar de si as palavras perversas dos livros do tio, que lhe foram apresentadas aos 12 anos.
A Maud não é boazinha nem fofinha nem tem qualquer pretensão a vítima das suas circunstâncias de vida. Quando a dura realidade das consequências da sua fuga de Briar a assola, sim, ela é uma vítima. Mas até aí, não.
"Pigeon, my arse."Esta personagem fascina-me. Nada nela é o que aparenta ser: a inocência, a delicadeza, a bondade... E depois afinal, ela tem gestos, pensamentos, toma atitudes... Que me surpreendem. Que a fazem exceder-se a si própria. Que apenas a tornam tão melhor do que ela própria se julga.
Acho de uma delícia quase amarga que seja a Sue, a fofa e adorável, que nunca tenha tido a coragem ou a vontade de inverter o seu destino e, em paralelo com o seu, o de Maud. A Maud pensou nisso, quase tentou, mas foi Sue que, inconscientemente, não lho permitiu. Acho bonito que Maud tenha tentado salvar Sue de uma dor imensa, da dor de se saber traída por alguém que considerava mãe... Enquanto Sue, por seu lado, preferiu trair a Maud e orgulhar a mãe que acabou a abandoná-la...
Muitos amores trocados, não é?
Não há propriamente bons ou maus por aqui. Embora Gentleman na sua vilania se aproxime muito disso e se chegue a um ponto em que nós, tal como Maud ou Sue, temos um certo receio das ideias que irão sair daquela cabeça e quase nos encolhemos quando ele aparece. O personagem está muito bem construído. Rupert Evans é muito bonito, é sim senhor, sabe Deus que eu o apreciei muito sorridente várias vezes enquanto ele seduzia a Maud ou admoestava a Sue... Mas efectivamente não esteve à altura do personagem que lhe coube em mãos. O Gentleman de Evans tem o seu quê de nojentinho, não o nego, mas não é asqueroso no sentido de provocar medo, de quase lhe desejarmos a morte.
Devia falar da Sue? Não há muito a dizer. A Sue é de facto adorável. Na sua simplicidade, tem um fundo bom. Na sua simplicidade, tem uma lealdade imensa às pessoas que a criaram e com quem viveu toda a vida, lealdade essa que acaba por não a colocar na melhor das situações. Sim, ela afeiçoa-se a Maud e sim, por momentos, deseja salvá-la do seu destino horrível. Mas é um desejo passageiro, que ela prefere ignorar. Como pessoa simples, Sue é também cobarde e acaba vítima da sua cobardia. Da mesma forma que Maud acaba vítima do ressentimento ante a vergonha de Sue.
Que tem
Fingersmith de especial? Não sei. Bateu-me fundo, porque é muito humano, mesmo que a sua humanidade seja invulgar. E, como tudo o que é humano, atinge-me em pontos que eu nem sabia que tinha. Não consigo deixar de pensar nos inúmeros detalhes que poderiam ter feito com que a história tivesse outro rumo, caso Sue ou Maud assim o quisessem. As incontáveis vezes em que palavras ficaram por dizer e as acções por fazer... Sim, é um livro, logo não havia volta a dar que já tinham o destino traçado. But still... It was all pretty real to me. Era algo muito próximo de mim. Do que sinto e não sinto, do que gostava de sentir.
Gostava que o filme tivesse mantido certos pormenores que me comoveram no livro. Como o facto de o nome Maud ser sagrado para a Sue e só o ter pronunciado quando já não havia impedimentos. No filme, a dada altura, a Sue deixa para lá a sua condição de aia e é Maud para aqui, Maud para ali. Também achei bonito como no livro se revelou lentamente o modo como a vida de Maud se alterou com a chegada de Sue. Ela era fechada, não estava habituada ao contacto humano. Não havia ternura ou sequer o toque na sua existência. A Sue chega e é divertida e despreocupada e está habituada ao toque como algo normal, que faz com toda a gente. Da primeira vez que a Sue tenta fazer o gesto básico de dar o braço, como duas amigas normais fazem, a Maud retrai-se, quase treme. E a Sue tem de ir conquistando o direito a um tipo de toque tão simples que o vemos diariamente em montes de gente no meio da rua... No filme, aquilo ao segundo dia já é abraços e é uma festa e até é a Maud que toma a iniciativa...
Enfim, pequenos pormenores. Já estou a falar demais, não já? E não disse nada de jeito... Talvez um dia releia isto e escreva mais e mais, tudo o que hoje me esqueci.
MJNuts