Wednesday, October 20, 2010

Noruega

Saí de Londres muito mal dormida, de madrugada, rumo a um país que nunca tinha visitado e do qual sabia pouco. Sempre que pensava em países nórdicos, vá-se lá saber porquê, tinha o sentido na Suécia e era lá que queria ir primeiro. Finlândia em segundo lugar. Mas a Vida troca-nos sempre as voltas.

Este Verão fui leader da delegação portuguesa numa Village do CISV, a Flower Power Village em Viena. Para quem não sabe, o CISV é uma organização internacional que visa trocar experiências entre culturas, com vista à educação para a paz. Building global friendship, dizem eles. Não podiam ter mais razão.

Graças ao CISV, travei amizades com pessoas que vão duma ponta à outra do Mundo e isso, para uma pessoa aventurareira que nem eu, é o melhor que pode haver. E foi assim que arranjei uma amiga na Noruega. Que foi a melhor anfitriã com que se poderia sonhar...

E a Noruega... Não há palavras. Acho que é o país mais lindo em que já pousei o olhar. Suponho que ajude o facto de eu preferir paisagens montanhosas ou com um toque de Inverno.

Toda a semana que passei na Noruega foi uma experiência única. Por estar com uma norueguesa, pude vivenciar o estilo de vida deles, os horários, os hábitos, a alimentação. E que diferente que é ser noruguês!

Eles, assim que chegam a casa, tiram logo os sapatos. Às vezes nem entram em casa, deixam-nos à porta. Jantar para eles é entre as 15h e as 18h, coisa que causou muita picardia entre mim e a minha amiga. Bebem imenso café, a toda a hora. Não é a nossa bica, é uma caneca inteira de café. E outra e mais outra. Parecem os ingleses com o chá. Estão habituados ao Inverno e adoram-no. Quando começa a chegar o tempo escuro, refugiam-se em casa a tricotar. Na Noruega, não é preciso comprar luvas porque eles tricotam-nas uns para os outros. Pareceu-me uma tradição adorável.

A Noruega é cara como nunca vi. Ainda bem que o meu alojamento era gratuito... Não há uma única refeição, no mais manhoso dos restaurantes, que custe menos de 10€. E isso já é ser barato! Mas os preços foram a única coisa da Noruega que não gostei.

Apaixonei-me pelo país assim que aterrei no aeroporto de Oslo. Talvez ainda antes de aterrar. Quando as atribulações aéreas me acordaram e olhei para lá da janela, esperava-me um sem fim de pinheiros na paisagem. Mas achei-os apaixonantes porque o Outono tornava-os todos diferentes: havia os ainda verdes, os vermelhos, os laranjas, os amarelos... Esqueço-me sempre das saudades que tenho do Outono da minha infância. Do Outono que Lisboa ainda tinha.

Estava sol e não senti frio quando pus o pé cá fora. No aeroporto, que é o maior do país, reinava um silêncio sepulcral que me fascinou. Adoro o burburinho dos aeroportos e das estações de comboio. É uma espécie de estática agradável que, na azáfama das nossas mentes, se confunde com silêncio. Mas ali não. Ali o silêncio estava no aeroporto e a estática estava na minha mente. Tratei de a eliminar de imediato para simplesmente apreciar o momento. E sorrir.

Oslo é uma cidade pequena. Eu por acaso até prefiro cidades pequenas para turismo. Não tem nada de especial. É acolhedora, bonita. Tem um fjord que para os habitantes de Oslo há-de ser uma versão do mar onde instalaram uma bonita e pacata marina. E que agradável que é subir àquela colina e sentar nos bancos de jardim, mesmo no topo da encosta, a sentir a brisa e o sol no rosto, a vê-lo reflectir na água lá em baixo.

Oslo tem também o que me parece ser uma das minhas construções humanas preferidas. Talvez a preferida. Mas talvez tenham sido as condições em que a vi.

O parque mais famoso de Oslo é o Vigeland Park. E é o mais famoso porque tem um corredor imenso ladeado de estátuas de nus que culmina numa escadaria onde, central, imponente, está um monólito. Chovia imenso quando lá fui, o parque estava vazio. As estátuas, que deveriam ser cinzentas claras, estavam cinzentas escuras por estarem molhadas. O silêncio norueguês envolvia-me, assim como o Outono.

Normalmente, quando penso em estátuas de nus, lembro-me daquelas estátuas fisicamente perfeitas da época clássica ou do Renascimento (à la David, do Michelangelo). Mas aquelas não. Eram apenas corpos nus, como o meu, como o vosso. Gordos, altos, magros demais, perfeitos, baixos, mal-feitos. Corpos. Aquelas estátuas representavam a humanidade despida de tudo, até da roupa. E, quando a humanidade se despe, só resta o essencial: sentimentos e relações. Passo após passo, olhando para a esquerda ou para a direita, via universos pessoais transformados em estátuas. Pais a brincar com filhos, amantes a discutir, uma criança a fazer birra (que é, estranhamente - digo eu -, a mais famosa das estátuas), mulheres felizes, homens tristes, velhos a chorar a morte, intelectuais a observar o horizonte, casais de homens, casais de mulheres, famílias... Era um espectro infinito de emoções humanas até perder de vista.

Senti-me tocada por tudo aquilo. Falou-me directamente ao coração, de uma forma que costuma chegar tão mais facilmente através de livros, cinema/televisão, música... Parei momentos sem fim diante de uma rapariga, jovem aos meus olhos, com a cabeça enterrada no peito de um rapaz, os punhos contra os peitorais dele. Chorava. Ou a chuva fez-me pensar que sim. Ele abraçava-a como podia e era dor o que li na sua expressão.

Eram só estátuas, mas eu ali vi e senti Arte. E senti-me pequena ao chegar junto do monólito e aperceber-me que não era só mais uma gigantesca pedra fálica. Era um amontoado de corpos nus tão íntimo, tão entrosado, que não se percebia onde um corpo acabava e outro começava. Apeteceu-me trepá-lo e sentar-me no topo, ser mais uma deles. Mas eles eram cinzentos e a minha vida ainda tem cor.

Saí de Oslo para ir a um casamento numa terrinha cujo nome nunca consegui pronunciar, quanto mais escrever. A paisagem norueguesa é... bela. Nem gira, nem linda, nem bonita. É bela, porque é Beleza a tomar forma. As montanhas, os cumes, as casas de madeira. A variação de cor das folhas das árvores, o nevoeiro. Para onde quer que olhasse, o meu cérebro parava por não conseguir expressar-se ante as visões diante dos meus olhos.

Perante a Noruega, deixei de conseguir adjectivar.

O casamento foi uma das experiências mais curiosas da minha vida, mas já noutro lado falei dele e perco-me sempre a tentar expressar o que cá vai dentro. Não percebi nada do que se disse, mas qualquer ser humano é sensível à emoção noutro tom de voz, à linguagem corporal, às canções.

Fiquei a saber que os noivos se conheceram porque, após tirar a carta, a noiva resolveu ir com a melhor amiga fazer aquela brincadeira parva em que se seguem carros aleatórios. Acho que o sorriso parvo que se plantou no meu rosto deve ter durado mais do que o socialmente aconselhável, mas quis lá eu saber. Podia sempre escudar-me na minha nacionalidade e fazê-los pensar que os portugueses são todos idiotas sem grande sentido de etiqueta.

Quando a música finalmente parou (e passava das 3 da madrugada e por lá os casamentos podem durar até de manhã...) e as pessoas começaram a sair, o céu resolveu desabar e a neve caiu. Foram as primeiras neves do norte da Noruega desde que o Verão chegou ao fim. Foi a terceira vez que vi nevar na minha vida. Não há palavras para descrever a criança dentro de mim que ficou histérica de alegria por estar ali, naquele momento, com aquele simbolismo.

Os meus últimos dois dias na Noruega foram passados em Tromsø, a cidade onde a minha amiga estudou. Tromsø é uma ilha no meio de um fjord. Uma ilha de casas baixas e passeios curtos, que os autocarros facilmente atravessam de uma ponta à outra. Com a neve, as estradas estavam brancas assim como os tectos das casas de madeira. Eu adoro flocos de neve a cair, pois é impossível a minha imaginação pintar quadros mais bonitos que esse...

Não consigo mesmo pôr a Noruega por palavras.

À noite, parou de nevar e o céu ficou sem nuvens. Ao longe, na outra margem, conseguia ver as luzes das casas entrecortadas na paisagem e os cumes brancos de neve das montanhas.

Parada no meio da neve, enregelada, com os ténis enterrados e molhados, olhando para cima, vi o céu inteiro. Um paraíso de céu. E a Noruega ofereceu-me de presente a Aurora Boreal, ainda tímida, horas antes de eu ter de lhe dizer adeus.

MJNuts

7 comments:

Afrodite said...

Claro que este eu não poderia deixar sem "postar".

No dia em que fui a Vigeland Park tanto chovia que parecia que o céu ia desabar. Mas mesmo por debaixo de um céu cinzento achei que foi um dos mais encantadores sítios que visitei.

A Noruega é sem dúvida um dos locais mais belos do planeta. Repleta de fyords que tem o seu expoente máximo no Preikestolen - aka - Pulpit Rock, é um país em que existe um misto perfeito do cosmopolita das cidades com o verde das montanhas.

Achei que para os noruegueses o tempo passa mais devagar pois conseguem aproveitar melhor a vida. Não encontrei empregados mal dispostos nem pessoas com pressa para chegar a algum lado. As crianças brincam nas ruas. As crianças fazem escaladas, caminhadas e outras aventuras com os pais e animais de estimação.

A Noruega é um mundo à parte :) um belo mundo!

Pintas nos Olhos said...

Uau.... Adorei o post e fiquei com uma vontade imensa de ir à Noruega, que confesso nunca me chamou.

Tu conseguires sentir beleza e emoção na arte fez-me sentir orgulhosa, não me perguntes porquê, mas parece que há aí esperança para ti. E quero ir a esse parque definitivamente! Contigo :)

A Noruega parece ser uma mundo à parte, as pessoas vivem bem, sentem a natureza à sua volta, e como já foi dito aproveitam melhor o tempo, ou o tempo está lá para eles. Não é por acaso que é o melhor país para se viver, com melhores condições de vida. Os preços esses estão de acordo com isso. Quero ir à Noruega!

"Eram só estátuas, mas eu ali vi e senti Arte." Boa Twin, I'm proud of you.

André Pereira said...

Odeio. Odeio a maneira como descreves as coisas, causando-me uma nostalgia imensa e de facto imaginar tudo.
Odeio o facto de estar a perder tanto.
Odeio quando venho ler isto e penso, a MJ escreve tão bem e transporta-me para uma falsa realidade.
Argh, este Verão, se não acontecerem mais eventualidades como a que me aconteceu este ano, vou-me inscrever logo no CISV, mas logo!

Morcegos no Sótão said...

Já te podes inscrever no CISV, eles não estão só activos no Verão... Se quiseres, um dia vamos tomar café à Baixa e passamos na sede para eu te apresentar. :)

MJNuts

Anonymous said...

Este post tem mais do que aquilo que podemos imaginar o que é a Noruega. Tem a Noruega Contigo. Tem-te a ti. Só tu e a Noruega é apenas a paisagem. Tem mais do que aquelas estátuas que são vistas as olhos de qq comum mortal. tem a tua visão. Tem muito de ti :)
Parabéns. Não é fácil!
Obrigada

Anonymous said...

Não tenho palavras para descrever a magnificência deste texto...

Sabes mesmo como colorir a tua história, cada mínimo detalhe descrito ao mais ínfimo pormenor que nos toca a todos. E se não toca a todos, tocou-me a mim.

:)

Dina Barbosa said...

Excelente post! Sempre quis ir lá, então agora fiquei com uma vontade redobrada!

Beijo!**