Eu lembro-me de ser ainda muito nova, pré-adolescente ou talvez adolescente recente, e estar a ver as Marés Vivas na casa dos meus avós. Era Verão. Vá-se lá saber porquê ou em que contexto, um dos personagens tem um daqueles discursos moralistas para levantar o espírito aos presentes e sai-se com a seguinte frase: "A Vida é o que nos acontece enquanto fazemos outros planos". Na altura não sabia tanto inglês como sei hoje, rabisquei a frase num caderno conforme aparecia nas legendas.
É uma citação que decorei, com a qual concordo, a que acho piada. E tenho a sensação que as melhores aventuras, as mais queridas recordações, são aquelas de momentos que não estavam nos planos. A absurdidade do imprevisto deixa-me sempre um sorriso no rosto.
Foi o que me aconteceu ontem. Quem me dera ser melhor a contar histórias. Quem me dera ter o poder dela ou dele de contar histórias. De fazer com que coisas extremamente triviais pareçam a maior aventura. Sendo eu como sou, nem o facto de ter caído num canal de Amesterdão (vá lá, a quem é que isto acontece?!) consigo tornar interessante. Costumo dizer que sou uma emotionteller, não uma storyteller. Mas esta incapacidade de contar histórias... Faz-me pensar por vezes que sou aborrecida, que não tenho nada de especial para contar, que não vivi nada de jeito... O que, tendo em conta tanta coisa, é absolutamente mentira.
Ontem tinha voo marcado para Lisboa. 16.30h, London Gatwick - Lisboa, pela EasyJet. Cheguei ao aeroporto uns míseros 5 minutos antes de fecharem a segurança para o meu voo. Fui directa às portas de embarque e até estava feliz, que só tinha de perder tempo na fila para embarcar. Mal eu sabia...
Havia uma moça na fila que me chamou a atenção. Tinha uma mala dos Beatles, olhos que me pareceram azuis (afinal eram verdes e eram muito bonitos - olhos verdes costumam ser bonitos, mas não profundos, os dela eram ambas as coisas e brilhantes também) e um casaco que indicava que ela gostava de se vestir numa onda mais navy. Numa fila tão repleta de óbvio portuguesismo, achei que ela devia ser inglesa a caminho de uns dias de férias em Lisboa. Tive vontade de me meter com ela, de ter companhia para a viagem, mas não fui capaz. É nestas coisas que as crianças são mestras e os adultos são um belo monte de caos e embaraços. Lá fiquei, lado a lado com ela na fila, lá se trocava um sorriso ou um olhar. Nada como situação semelhante para se formarem ligações frágeis de compreensão e solidariedade.
Entrámos no avião e eu já sei que avião para mim é dormir com fones bem altos nos ouvidos. Ora, o piloto começa a falar connosco... Não liguei a primeira vez, estava já a caminho da dormida. Começa uma música mais agitada a soar no mp3 que me desperta e apercebo-me que continuamos parados, todos dentro do avião. Olho para as horas e a coisa já vai tarde, assim tarde para além dos limites habituais da EasyJet. Lá vem o piloto de novo... E parece que o vulcão voltou a fazer das suas. Tantos anos em que o espaço áereo me foi absolutamente indiferente e ele escolhe este?! Enfim...
Três horas depois, é oficial. Voo cancelado. Eu devo ter problemas hormonais ou algo que valha, porque ficar stressada ou extremamente irritada só me ocorre em situações extremas e de grande intensidade emocional (aliás, a querida Twin faz questão de festejar quando me vê sair ligeiramente do sério). Ou seja, voo cancelado e eu calmamente a ponderar que havia de fazer da vida. Se ficava no aeroporto, se voltava para os meus lares de acolhimento londrinos...
O panorama era agitado. Pessoas a chorar, planos alterados, reclamações. Esperava mais manifestações típicas de histerismo português (à la velhotas dos autocarros a reclamarem da juventude e da condução do motorista ou coisa que valha), mas tive sorte. Nas filas de tentativa de lidar com os acontecimentos recentes, lá conheci uma simpática rapariga portuguesa, também a viver nas Inglaterras. Nada como pessoas simpáticas e tagarelas para melhorarem uma situação que prometia horas de tédio. Para minha surpresa, a tal rapariga navy da fila de embarque tinha estado sentada ao lado desta moça no avião e já se conheciam. E bem, passei de estar sozinha a ter duas companheiras de desgraça. Que passaram a três, quando um velhote amoroso, que pelos vistos também esteve com elas a aturar as três horas de avião que não levanta voo, se juntou a nós.
É nestas alturas que salta cá para fora o lado humano das pessoas, para o bem e para o mal. A moça navy, a L., é brasileira mas está a viver na Holanda. Está sem dinheiro e sem bateria no telemóvel, não sabe que fazer, não conhece Portugal, se calhar devia voltar para a Holanda mas não tem ninguém em casa. Acho tão lindo. Emprestam-se telemóveis, trocam-se palavras de conforto, oferece-se apoio e ajuda, transmite-se paz. A moça portuguesa, a I., tem genica e perfil de líder, claramente. É sempre bom estar com alguém assim, uma pessoa sente-se mais segura.
Na fila para o balcão da EasyJet, damos com uma desgraçada coreana, que está sozinha e vai para Lisboa sozinha porque lhe disseram que era uma cidade lindíssima e que valia a pena visitar. O inglês dela não é grande coisa, está nervosa e desorientada. E assim ao nosso grupo já de si meio insólito, se junta mais uma pessoa. A que rapidamente se juntou um senhor indiano de meia idade, ajudado pelo nosso amoroso velhote de olho azul.
Cada um de nós com as suas vidas e obrigações em Lisboa, achamos que a melhor opção é voarmos todos para Faro e de lá seguirmos de autocarro ou comboio para cima. São 9 da noite, o voo é às 6h da manhã.
Ainda ponderamos hotel, mas somos jovens e, apesar do hotel ser pago pela companhia aérea porque o cancelamento não é culpa do cliente, achamos que não vale a pena a perda de tempo em viagens para cá e para lá (quando ainda por cima se pagam as ditas viagens). E assim se montou um "acampamento cigano", como a I. lhe chamou, na área dos assentos da Starbucks de Gatwick. Com sofás e tudo. Já que tínhamos de estar naquela situação, porque não aproveitar ao máximo?
Partilhámos comida e histórias de vida. Aceitámos novos elementos no grupo, sob a forma de uma adolescente portuguesa praticamente criada em Londres. Dormimos mal e porcamente, lavámo-nos mal e porcamente, ainda tivemos tempo para ver o The Fantastic Mr. Fox e tentar avisar famílias e amigos do nosso desaire.
Senti-me bem, apesar da situação. Senti-me feliz, apesar da imagem que eu já tinha de mim deitada na minha caminha ter ido por água abaixo.
Naquelas horas, aquelas pessoas foram a minha família. Confiei nelas para me guardarem as coisas, emprestei-lhes roupa, elas emprestaram-me roupa, pagaram-se pequenas coisas. Todos juntos, sorrimos em vez de chorar. Tornámos infinitamente melhor uma experiência que à partida deveria ser de aborrecimento mortal.
Entretanto, e porque eu adoro quando a Vida nos dá presentes... A I. passou 6 meses na Hungria pelo programa de Serviço de Voluntariado Europeu. Já me borbulham as ideias na cabeça. Acredito piamente que, se estivermos abertos à oportunidade, há coisas que simplesmente vêm ter connosco, nós só temos de as agarrar.
O avião para Faro não foi cancelado. Dormimos a viagem praticamente toda. Chegados a Faro, apanhámos o autocarro para Lisboa. Também dormimos a viagem praticamente toda. Estas coisas cansam!
Em Lisboa, seguimos os nossos caminhos. Ajudei a coreana a chegar ao seu hostel e a L. a orientar a sua viagem para Tomar (e ainda levou almoço!).
Não sei se vou voltar a ver alguma destas pessoas, espero que sim, mas aquece-me o coração pensar que, durante menos de 24 horas, foram mais importantes para mim do que pessoas com quem estou várias vezes. Saber que, sob condições inesperadas, o ser humano ainda tem capacidade de dar a mão ao próximo, enche-me o peito com tal alegria e orgulho que me é difícil explicá-lo.
Espero não me esquecer das gargalhadas, dos pequenos hábitos, das histórias. Espero não me esquecer como, horas depois, podia não ser amor nem sequer amizade, mas havia uma sensação de ternura e confiança a envolver-nos, como aquele cobertor extra que faz toda a diferença numa noite fria.
As pessoas podem valer a pena. Gosto de ainda haver oportunidades para me relembrar disso.
MJNuts
Às vezes frequentava a sociedade
6 years ago
10 comments:
:) Acho que foi uma boa história! Seria uma daquelas coisas que acontecem que tb me fariam pensar e ter prazer nisso..!
Adorei este teu relato de uma história de vida, onde todos aprendem a viver. Revejo parte da minha vida nele, durante os meus anos de vivência na velha Londres. Hoje em dia já só penso neles mais esporadicamente, quando me perguntam como é a vida lá, mas cada vez que o faço é como se tivesse acontecido ontem.
Obrigado Maria por esta recordação.
Mário Pereira.
Adorei esta história, adorei.
Sabendo que indirectamente ajudei a L, faz-me sentir bem :D
Fiquei misty eyed :)
Se te vir, dou-te outro abraço!
É bom saber que, para além de mim mesma, há quem tenha fé nas pessoas. Adorei a história; trouxe-me uma lágrima ao olho, assim como todas as histórias que falam de altruísmo e benevolência em tempos difíceis.
"Amai-vos uns aos outros como eu vos amei".
Confessa lá, não estavas nada à espera de uma quote bíblica? xD
Acho que és das pessoas que eu conheço que mais fé tem no ser humano. Não percas isso.
Bjs
Com o papa cá, uma citação bíblica vem sempre em contexto!xD
Não sei se me será possível perder a fé nas pessoas, eu sou naturalmente meio atrasada mental, mesmo. ahah :P
E é bom saber que não sou a única a ter fé nas pessoas.
MJNuts
Estás a ver? Sempre conseguiste contar a história de forma interessante, sem ser aborrecida :).
Eu gostei muito! E achei piada às diferenças no vosso grupo. A diversidade traz sempre mais valias e este caso não foi excepção.
Só é pena não saberes se vais voltar a vê-los...ou então não...o inesperado é sempre mais interessante :p.
Sabes que o voo da coreana para sair de Portugal também foi cancelado e então voltei a vê-la, passei outra tarde com ela a vaguear por aí. ;)
E a L. está neste momento a caminho de Lisboa para cá passar o fim-de-semana. A Vida é engraçada.
MJNuts
É! Pode ser que daqui a uns tempos sejas tu a ir para a Coreia :).
Parece que sempre tens um belo jeitinho para contar as tuas histórias. Tem ar de ter sido uma daquelas noites importantes.
Mas, realmente, percebo essa tua frustração. Às vezes, acontecem-nos coisas tão bonitas que, se calhar, vistas de um ponto de vista exterior, não parecem ser tão importantes, e que, depois, nenhuma palavra que as expliquem farão justiça. E, por vezes, até queremos escrever sobre elas, mas, depois, já é tarde e a sensação já se perdeu. Mas, não faz mal, fica ali na tua memória.
É um pouco como aquela história das fotografias, não é. No dia em que o João me disse que, naquela noite, tinha, muito provavelmente, vivido o melhor momento da vida dele, mostrou, também, um certo descontentamento por ninguém ter filmado. E eu disse-lhe que, assim, até era melhor. Ficava, apenas, na memória dele e ficava muito melhor entregue, com uma beleza muito mais secreta e subtil.
Por vezes, há coisas que devem ficar só para nós. Só nós compreendemos certas coisas. Mesmo a queda ao canal, my dear MJNuts. Nunca ninguém irá ver tudo aquilo que nós vimos. Nada do que nós possamos vir a dizer fará as pessoas compreender que aquele foi, muito certamente, um dos dias mais importantes das nossas vidas.
E o mundo continua. E é bonito como é. Gostei imenso deste pequeno testemunho *
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