Ontem, acordei cedo. Sem despertador, sem nada que me fizesse despertar do meu sono habitualmente pesado. Acordei perto das dez da manhã. A casa estava por minha conta e o Sol reflectia o calor no soalho de madeira daquele pequeno apartamento, como se quisesse contar uma história diferente daquela que a Lua contara na noite anterior.
Sem planos, desci até ao -1, peguei na bicicleta e entreguei-me àquele dia quente, promissor de um Verão ainda mais calorento. Acho que, de uma maneira muito pouco saudável, sempre evitei, durante toda a minha vida, andar por aí sozinho. Não consigo explicá-lo, mas a ideia de ser um andarilho solitário sempre me atacou de forma negativa. Mas, agora, já não. Lisboa parece fazer os solitários ganhar uma beleza mais simples, mais limpa e hipnótica. Muito mais que isso, as ruas de Lisboa parecem ter ganho um outro encanto que só encontro quando estou sozinho. Crescer trouxe-me este pequeno prazer. Ao menos isso porque, nestes últimos meses, em que cresci mais rápido do que em qualquer outra altura da minha vida, o que esta me trouxe nem sempre foi bonito. Mas este gosto por uma cidade que pode pertencer a uma pessoa só, guardo com um carinho que só um adulto pode ter.
Para sair do Parque das Nações, subi pela Baptista Russo, cortei para o prolongamento dos Estados Unidos da América, entrei para Chelas, desci e atravessei a ponte que nos leva às Olaias, subi até à Alameda e, então, tu ligaste-me. Ainda bem que o fizeste porque, mesmo que inconscientemente, acho que me dirigia para tua casa. Gosto do que sinto quando Lisboa me trata como uma pessoa só, mas a ideia de parar em tua casa, subir até ao quarto e acordar-te com, talvez, um beijo faz-me sentir ainda melhor. Adoro o teu quarto pela manhã. Mas tu não estás em casa. Tens aulas e eu sinto-me um tolo por ter acreditado que, deitado na tua cama, ainda sonhavas com monstros e outras criaturas. Combinamos almoçar, mas ainda faltam algumas horas para isso.
Só quando desligas é que dou conta do lugar onde parei. Lisboa volta a tratar-me como um jovem (ou um adulto) que, sozinho, percorre a cidade numa bicicleta. Nunca tinha estado ali e, inevitavelmente, rendo-me aos encantos de uma terra que, de forma incansável, esconde lugares que a minha vida inteira não trará tempo para descobrir. No cimo da Alameda há um pequeno largo que tem esta vista primorosa para uma parte da cidade.
Alguns velhos estão por ali sentados e, mesmo eles, contêm aquela beleza triste e simples, coberta pelo manto fresco da sombra das árvores. Sento-me por um bocadinho e como uma ou duas batatas do pacote de Lays que trago na mochila. Sinto-me tão confortável com a t-shirt branca, os calções de ganga, as havaianas e de mochila às costas. Nela trago, apenas, uma camisola, a
Educação Sentimental do Flaubert e as batatas.
Quinze minutos depois, torno a pegar na biciletra e desço a grande velocidade a pequena colina da Alameda, alcançando a Almirante Reis. Ora ando na estrada, tornando-me parte da confusão do tráfego, ora torno-me um modesto cidadão, com uma bicicleta, que atravessa as estradas pela passadeira. É como me convém porque, para mim, o dia de hoje não tem regras. Não existem sinais vermelhos, sentidos obrigatórios, passeios ou estradas reservadas para o bus, nem mesmo contra-mãos. Hoje, o Sol, o vento e a cidade fazem de mim uma pessoa livre.
Subo na direcção do Saldanha e continuo a pedalar a caminho de Entrecampos. Encontro-te junto à Estação de Comboios e faço-te companhia até à tua faculdade, onde irás ter aulas. Gosto de pedalar devagarinho ao teu lado. Gosto de conversar contigo, ao mesmo tempo que me tento equilibrar por me fazeres andar tão devagar. Tenho a certeza que não conseguirias andar a esta velocidade sem cair. Adoro o teu jeito trapalhão quando andas de bicicleta – é tão teu. Despeço-me de ti porque vou almoçar com ele e continuo a minha viagem ao longo da Avenida de Berna.
Encontro a Praça de Espanha e subo por aquele viaduto abrasador, descendo, depois, em direcção ao Campo Grande. Finalmente, alcanço a Cidade Universitária e tu já me ligaste a avisar que terminaste as aulas. Rapidamente, chego à porta da tua faculdade, mas ainda não há sinal de ti. Gostava que me visses chegar de bicicleta. Não sei porquê, gostava. Assim sendo e, convencido de que aquela é a melhor opção, não páro de pedalar. Passo a tua faculdade, dou a volta uns metros mais abaixo e torno a subir, passando novamente à frente do edifício. Chegando uns metros mais acima, torno a dar a volta e desço. Ainda não saíste. Porque demoras tanto tempo? Convenço-me de que aquilo que estou a fazer é em nome do não estar parado, mas, a verdade, é que não sei ao certo porque continuo a pedalar. Subo e desço aquele largo mais algumas vezes até apareceres à porta para me veres chegar. Prendemos a bicicleta num lugar próprio para ela, apesar de não sabermos muito bem como funciona.
Pela primeira vez em muito tempo, acerto naquilo que quero comer. Uma baguete de queijo fresco, uma coca-cola de lata e um pastel de nata. Mas isso não importa, porque o lilás que preenche suavemente a pele em torno dos teus olhos está particularmente bonito naquele almoço. Sei que tens andado um pouco doente estes últimos dias, mas continuo a gostar da tua cor. Muda todos os dias. Há sempre um tom diferente no teu rosto para eu descobrir.
Depois do almoço, mostras-me um lugar onde nunca estive. O Horto do Campo Grande. Um lugar abafado, escondido do mundo, apenas encontrado por aqueles que já o conhecem. Ah, Lisboa... por onde tenho eu andado? Ali, encontra-se uma grande variedade de plantas, árvores, flores e outros artigos para venda. Caminhamos os dois à procura de algo que não conhecemos e perdemo-nos naqueles corredores estreitos, delimitados pelas plantas, pelos quais não queres passar. Consigo convencer-te a atravessá-los e conduzo-te a lugares mais abafados, na ânsia de encontrar o que procuramos. No entanto, és tu quem descobre a passagem para o jardim onde se encontram os dois amantes: duas estátuas de plástico, velhas e já roídas pelo tempo, que representam um velho agricultor e a sua fiel companheira, de pá na mão e um chapéu de palha para proteger a cabeça do Sol. São quase da nossa altura e tu logo começas a fantasiar com o despertar nocturno daqueles dois bonecos para fins horroríficos. É uma perspectiva com algum potencial, mas, quando voltamos a passar por eles, depois de termos percorrido o jardim, já estás rendido à ideia de que aquele não é mais do que um amor intemporal, mais belo que as roseiras que os afagam.
Tens que voltar para as aulas e eu prometo ir buscar-te mais tarde, quando a minha bicicleta estiver já em repouso. Abraçamo-nos num contraste entre o branco que visto e o preto que há em ti e a bicicleta torna a entregar-me a Lisboa. Desço a Cidade Universitária até à Avenida do Brasil e subo aquela grande rua, passando por Alvalade e pela casa dos loucos. Descubro que, agora, ligando a Cidade Universitária e a Rotunda do Relógio, há um corredor vermelho, desenhado no chão, destinado apenas às bicicletas. Não que sirva de muito, pois, com todas as colinas que Lisboa tem, poucos portugueses se aventuram para além dos arredores das suas casa. A mim, dá-me um prazer enorme percorrer a cidade. Ver os loucos de Lisboa. Os pobres que abandonam o seu posto de trabalho para virem à rua fumar um cigarro. As senhoras de pernas pesadas que carregam as compras à procura de uma casa, agora, mais distante. Os mendigos que não conseguem fugir ao Sol. As crianças que faltaram às aulas. Os homens de fato e gravata que procuram o carro que foi rebocado. Os homens das obras que não cessam o trabalho para almoçar... Acreditem em mim: tudo isto vive dentro de uma moldura que não existe quando andamos de transportes públicos ou de carro.
Acho que a bicicleta é o meu meio de transporte favorito. Traz com ela uma liberdade feita do Sol quente das subidas, da brisa fresca das descidas e consegue fazer-nos chegar a todos os lugares da cidade sem que seja necessário um meio de distracção para o durante. A própria viagem é a melhor distracção que se pode ter. Lisboa não é cidade para bicicletas, eu sei, mas quero que o seja para mim. Vou fazer com que o seja.
Estou de volta ao Parque das Nações e, como combinado, dirijo-me para tua casa. Já terminaste as aulas e, desta vez, não é na Estação de Comboios que te encontro. Curiosamente, chegamos ao mesmo tempo. Mas, a verdade, é que não há nada de estranho neste incidente. A paixão que o destino tem por aquilo que eu e tu somos já nós conhecemos. Subo para o teu apartamento e deixo o meu tapete voador à porta. Mas quem vai voar és tu. Estás novamente de partida para terras londrinas e, a mim, parece-me que o que um amigo faz é passar com o seu compicha os minutos antecedentes à descolagem.
O teu cabelo continua bonito e a tua casa está inundada por um silêncio digno da nossa chegada. Tens que tratar de algo no teu computador e eu escolho deitar-me no sofá, atrás de ti. Sempre me surpreendeu a forma como pareces ter, constantemente, todos os livros que escolho ler, mas, depois, no teu escritório, não parecerem haver tantos livros quanto isso. Redescobrimos a Love Shack dos B52’s e ouvimo-la de forma repetitiva e incansável, enquanto fazes as malas à tua bela maneira desajeitada. Pões isto, pões aquilo, levas isto e, talvez, aquilo também. Livras-te de um e optas por outro, não sabes se levas aquele e, às tantas, já nem queres saber. As malas que voam contigo, nas viagens que fazes, levam, também, uma parte daquela tua criança pouco responsável e pouco preocupada. Sinto falta dela quando vais embora.
Quando tudo está pronto, temos que partir. Queixo-me ternurentemente por ter que abandonar o conforto da nossa harmonia caseira, plena e perfeita, para ter que te conduzir ao Aeroporto. Demoro mais tempo que o normal a encontrar o sítio ideal para guardar a bicicleta no teu apartamento. Não a quero entregar ao abandono triste e pouco seguro dos elevadores, mas, a verdade, é que a casa não é sítio para ela. Não foi feita para telhados, a pobre pequena, e logo mostra o seu descontentamento ao fazer de propósito para não caber nos corredores ou para não se aguentar em pé. Não tem escolha.
Deixas-me ir ao volante, apesar de se tratar do teu carro. Vou trazê-lo de volta para trás e, por isso, faz sentido que seja eu a conduzir. Para além disto, desta forma reina a ideia de que sou eu quem te está a entregar à partida. Como um pai que leva a filha para o ponto de encontro de onde vai partir a Visita de Estudo. Na aparelhagem, toca a banda sonora do
This Is England. As músicas mexidas dos anos oitenta trazem-nos os sabores da noite de sábado, ainda não digeridos por inteiro. É verdade, demoramos tempo a digerir os nossos feitos, as nossas histórias. No entanto, ter ainda o McBacon no estômago não significa que seja errado comer já o Super Sundae de Caramelo Com Cobertura Extra e Bolacha Crocante. Queremos sempre mais.
Começa a faixa cinco do CD. Uma música triste e bonita, mas pouco apropriada para a nossa alegria inocente da altura. Apresso-me a mudar para a faixa seguinte, apesar de, a mim, não me fazer grande diferença. Mudei a música por causa de ti. Acho que, nesta fase da tua vida, não gostas de músicas tristes. Quando chegamos ao aeroporto, páro o carro em
quatro piscas junto ao passeio onde os viajantes são deixados por aqueles que pouco dinheiro têm para o parque de estacionamento.
Chegou a altura de dizer adeus, pensamos os dois em simultâneo.
Lá vem o abraço esperado. Mas, desta vez, o nosso abraço tão famoso e perfeito sofre uma pequena falta de jeito e levamos mais alguns segundos até o conseguir dar. Rimo-nos porque, no fundo, aquele atrapalhamento é um jeito tão natural e tão nosso, que faz com que aquele momento pareça fazer sentido apenas com este. Abraçamo-nos com mais força do que a que costumamos fazer e sinto uma súbita vontade de chorar. Tenho andado frágil, tenho passado uns dias complicados e espero que me perdoes se começar a chorar sobre o teu cabelo de
Bela. Isso não acontence porque, inevitavelmente, o abraço chega ao fim e cada um segue o seu caminho.
No percurso de regresso a tua casa, ponho a tocar a faixa cinco do CD e entrego-me à tristeza da tua partida. Podem não concordar comigo, porque sei que não concordam, mas eu defendo que as músicas que ouvimos devem estar em sintonia com o nosso estado de espírito. A tristeza pede uma música triste e a alegria uma música alegre. Não concordo com a terapia da música alegre como uma possível cura à tristeza.
Estaciono o carro na garagem, vou buscar a minha bicicleta e, de volta à rua, volto a pertencer a Lisboa. Pedalo devagarinho em direcção a casa, agora perto, com a ideia em mente de estar a fazer a última viagem do dia. Ainda não tinha chegado a casa quando me ligas a convidar para irmos andar de bicicleta. Eu já cá ando. Junta-te a mim. Chegaste do trabalho e, rapidamente, vestes algo casual e juntas-te a mim para mais uma travessia pelo Parque das Nações. Pela primeira vez neste dia, tenho outra bicicleta que me acompanha. A cidade, agora, é nossa. Não, minto. Dou um estimado valor à tua companhia, a sério, mas não consigo inserir-te naquele meu mundo e não compreendo porquê. Talvez seja porque pedalas devagar e eu sigo, constantemente, à tua frente.
O fim da tarde chegou. A noite avizinha-se. Pela rua, encontram-se agora outro tipo de pessoas. Os adultos que, antes do jantar, decidem ir correr um pouco, fazer exercício, marchar, passear os cães ou andar de bicicleta também. É toda uma comunidade que se reune ao longo do Tejo para o mesmo fim desportivo. As margens do rio passam a ser feitas de suor, de conversas sobre o fim do dia, de cães que se conhecem, de olhares cruzados, de respirações ofegantes, de choros de criança. O céu vai ganhando uns tons lilazes que muito em breve serão laranjas. Mas enquanto é o lilás que pinta o céu, eu admiro-o e lembro-me dos olhos dele, rodeados pelo mesmo tom. Durante breves segundos, compreendo a inspiração tola dos poetas.
Quando regresso a casa, é já de noite e não sou mais desejado nas ruas de Lisboa. Sem luz no meu bicho de duas rodas, arrisco-me a fazer parte do proibido por lei, caso me aventure por essas estradas fora. Mas a noite não me atrai para essas aventuras como o dia o fez. Está frio e ela já está entregue ao seu descanso merecido.
Volto a ser o André. Aquele que faz parte de uma família. Aquele que tem uma casa, um pai, uma mãe, uma cama e um piano no quarto. Não sou mais parte da cidade. Não sou mais fantasma da calçada quente. Sou um rapaz com responsabilidades, que coloca o prato na máquina de lavar quando termina de comer. Sou um rapaz que tem trabalhos para fazer e planos para concretizar. Sou alguém que perde tempo à frente do portátil.
Dias como este, dizem-me que sou um homem livre. Um homem que pode fazer e ir até onde quiser. Só tenho que ir.
Guess
P.S.: A faixa número cinco era
esta.