Monday, March 22, 2010

Uma Questão de Sangue

Hoje sinto-me frágil. Ultimamente tenho-me sentido vulnerável. Tenho descoberto outras partes de mim. Partes que, talvez, só tenham acordado agora. Sinto que, neste últimos dias, o meu crescimento aumentou de ritmo e os meus olhos ficaram maiores.

Desde que ela se foi embora, tens sido a minha companhia. Ela faz-me falta e tu ajudas-me a suportar a distância que nos separa e levas-me contigo para os velhos tempos da nossa inseparável união. Aquele mundo de muitas cores e sons peculiares. Não és, de modo algum, fruto do meu interesse em completar aquele pedaço de mim que em Londres agora habita. Mesmo que sejas uma pequena consequência, és a melhor pequena consequência deste ano.

Continuas a surpreender-me com aquilo que sentes, com aquilo que se passa nesse teu mundo azul. Neste fim-de-semana, tiveste que ir visitá-la. Aquela senhora tua avó que conseguiu furar o teu coração com tanta dor que ainda hoje a sentes. Não me quero estender com palavras sobre aquilo que ela fez ou sobre o quanto te magoou porque, apesar de tudo, os sentimentos são teus e não tenho o direito nem a sensibilidade necessária para sobre eles poder falar. Imagino o horror que foi, imagino o horror que hoje ainda é. Tu não o mostras, nem falas muito sobre isso. É aquele teu pequeno dom de que eu tenho particular apreço. É um terramoto, é algo atroz, é o fim do mundo, mas tu consegues descrevê-los de uma forma tão calma, tão suave e tão feliz, que pouca importância parecem ter. Parece que a ti nada te magoa. Parece que a ti, o mal passa ao lado, pois se há alguém que ri mais que ninguém neste pequeno planeta, esse alguém és tu. Mas sei que não és assim. Eu sei que te dói. Eu sei que choras quando ninguém vê. Eu sei que também és frágil e compreendo. Compreendo e identifico-me com a forma como pulas, ris e cantas, não deixando ninguém perceber que há ali qualquer coisa que te está a roer o coração naquele dia. Eu compreendo e não faz mal.

Tiveste que a ir ver. Tiveste ainda que ir limpar o lugar onde ela habita, pois, se ninguém o fizer, ela poderá acabar a viver em tua casa por falta de condições. Que castigo cruel teres que ir limpar a merda que aquela senhora fez ao longo destes anos todos. Anos esses em que não a quiseste ver. Uma casa mais parecida com uma lixeira e uma senhora que nos causa dor só por olharmos para ela. Uma casa sem frigorífico, com pacotes de leite abertos e com o prazo expirado em 2001. Uma casa onde os excrementos foram deixados ao abandono antes de chegarem à casa de banho. Uma casa onde o resto do peixe do almoço de há dois anos atrás ainda habita a carpete da sala. Como é que consegues? Como é que conseguiste? Deve ter-te custado tanto. Deve ter-te custado não só porque se tratava de uma lixeira autêntica, mas porque se tratava da lixeira dela. Imagino o dia horrível que tiveste. As lágrimas que choraste. As horas que ficaste acordada durante a noite. O cheiro que ficou contigo.

Hoje li o que escreveste. Escreveste sobre isto:

Lembrava-me de ti de cabelo escuro, meio encaracolado nas pontas. Sempre solto.
Lembrava-me de ti com uma bengala, baixando as costas.
Lembrava-me de ti a falar alto, entre os poucos dentes que tinhas. Nenhum em cima e 4 em baixo.

Hoje chegou (finalmente?) o dia.
Olhei para ti e nem me reconheceste.
Quando ouviste a minha voz e percebeste que era para ti soltaste um Ai. Um Ai amoroso. Um amoroso teu. Mesmo peculiar.

Não me lembrava de como eras. De como respiravas devagar. De como olhavas sempre para as pessoas de baixo para cima. De como fechavas a boca com o lábio de cima tapado pelo de baixo.

Em como falavas.
Em como eras engraçada a falar.
Em como eras despachada.
Em como barafustavas em voz alta.
A minha mãe mandou-te calar. E nessa altura identifiquei-me contigo. Com essa voz alta e respondona, aquele tom de brincadeira irritante.
Saí a ti...será?

Não estava a espera de te abraçar. De te dar um beijinho. E te pôr pingos nos olhos. De me rir das tuas parvoeiras.
Estava a espera de não conseguir. De não te perdoar. De não querer estar ali. De não querer estar ao pé de ti.

Mas foi bom. Não é que tenha esquecido tudo. Não é como se não se passasse nada. Mas...fiquei com a estranha sensação de ter perdido o teu tempo.
De ter faltado à tua velhice. De não estar contigo. De te ir ver agora só porque estavas no hospital.

Agora não quero que partas. Agora quero ao menos te conseguir perdoar. Porque até gosto de ti...apesar de isso ser uma questão de sangue.

O tempo corre ao teu lado. E só espero que não te percas nele.

Só espero conseguir segurar-te a mão quando o relógio parar.

Deixaste-me atordoado. Deixaste-me confuso. Sentiste tudo aquilo que achei que não irias sentir. Ao fim de todos estes anos, depois daquilo que ela te fez, ainda consegues ir lá e sentir o teu coração quente. Acho que gostava de ter a tua capacidade de perdoar. Não, espera, deixa-me tentar escrever isto novamente. Acho que gostava de me preocupar com as coisas o suficiente para poder perdoá-las. Quando alguma coisa me chateia, eu livro-me dela.

De qualquer maneira, o que sentiste não foi uma opção e acredito que, hoje, deve custar-te ainda mais sentires ainda carinho por aquela senhora. Se para mim é confuso, imagino o peso que não vai nessa tua cabeça de vento. É esta parte do ser humano que me assusta sempre. Aqueles sentimentos e sensações que surgem, de repente, e que não sabemos de onde vieram, que não conseguimos controlar. Não sabemos em que tipo de pessoa nos tornam. Fico desconfortável com a ideia de haver partes de mim que ainda não conheço e que, provavelmente, não consigo controlar.

Acho que é por isso que choro às vezes. Porque não me conheço. Porque não sei o que se passa comigo. Tenho orgulho em ti. Limpar a merda de alguém que nos fez tanto mal é algo digno de merecer todos os meus louvores. És a minha heroína.


Guess

P.S.: quem quiser visitar o canto aluado desta valente heroína que passe por aqui.

3 comments:

Morcegos no Sótão said...

Alguns corações são tão grandes...

Ainda bem.

MJNuts

Pijaminha said...

Não sei se chego a heroína...

Obrigada por tudo. Por seres as minhas palavras. Por conseguires...por veres o "meu lado lunar".

**

Anonymous said...

E nós crescemos, vemos as coisas d eoutra forma e mais importante ainda sabemos lidar com as coisas da melhor forma para nós.
Parabéns por essa capacidade/aprendizagem