Thursday, April 2, 2009

Lavava no Rio Lavava

Ontem à noite fui sair para o Bairro Alto. Já há alguns meses que andava a planear com uns amigos irmos passar uma noite bem passada a uma casa de Fados. A Tasca do Chico. Esse cantinho pequenino e escondido, nas ruas do Bairro, que muitos de nós já ouviram falar, mas que poucos sabem exactamente onde fica. A verdade é que nunca me tinha passado pela cabeça que esta poderia vir a tornar-se uma noite que tão cedo não iria esquecer.

Tenho a dizer que estranhei um pouco todo o ambiente de rigidez e seriedade que pairava por aqueles lados. Eu sei que, no fundo, faz sentido. A tradição do Fado diz-nos que Este é uma coisa triste e pesada que deve ser sentida em silêncio, mas mesmo sabendo isto, fiquei de certo modo admirado pelo respeito imenso que aquelas senhoras e aqueles senhores tinham para com Ele. Eu e os meus amigos éramos, praticamente, os únicos jovens ali presentes. Fomos até sortudos o suficiente para conseguirmos arranjar uma mesa. Parecíamos um pouco deslocados. Até porque muitas senhoras estavam de vestido e alguns dos homens traziam fatos escuros e tinham, quase todos, aqueles lindos bigodes dos homens da velha guarda. Mas naquele espaço tão pequeno e apertado, era quase impossível não ouvir os murmúrios inevitáveis dos portugueses, que gostam de comentar tudo aquilo que estão a sentir. Uma atitude que era constantemente reprimida pelo senhor, que estava a anunciar os fadistas, com um tão estranhamente engraçado 'csssssssssssssssssss'. Uma forma menos óbvia e desagradável que o comum 'shhhhhh' para mandar calar os inoportunos, enquanto o Fado estava a ser cantado.

Os fadistas lá da casa cantavam todos (ou quase todos) lindamente e o facto de não poder estar alegramente a conversar com os meus amigos e ter sido obrigado a ouvir e a sentir o Fado, deu-me a confirmação de algo que eu sempre soube - o Fado é mesmo das coisas mais belas que Portugal tem. Não importa. Já vos dei o ambiente e o contexto; agora dou-vos a história.

M. levanta-se e vai perguntar ao dito homem se eu podia ir cantar o Fado.

O homem que anunciava, já de idade e com uma postura e atitude que impunha respeito a qualquer um, aproximou-se da nossa mesa e perguntou se eu sabia cantar o Fado. Aqueles que estavam comigo, reagiram imediamente com elogios forçados e patéticos à minha voz para convencer o homem que eu realmente cantava bem. Não sei até que ponto enganaram o pobre coitado. Eu sei que não canto mal, venha lá quem vier, mas não creio que me encaixasse na perfeição que o homem estava a averiguar se eu possuía. Convencido, apesar das minhas tentativas para o afastar, tomou nota do meu nome.

Eu fiquei num estado de nervosismo como nunca antes tinha ficado. Sentia o meu coração bater em todas as partes do meu corpo, como se estivesse prestes a fazer o exame mais importante da minha vida. Longos minutos passaram e muitos grandes fadistas encantaram aquele espaço tão acolhedor, que vivia num ambiente escuro de fraca iluminação. Inevitavelmente, o meu nome foi dito. O homem referiu que esta não era, para ele, uma das alturas mais importantes da noite, mas que a casa estava aberta para toda a gente que soubesse e quisesse cantar o Fado. Juntei-me aos guitarristas, que tocavam lindamente, e fiquei rodeado de dezenas de pessoas, como se estivesse numa pequena clareira de uma floresta. Lavava no Rio Lavava, pedi eu.

Claro que não iria cantar outra coisa. Este é, pois, dos poucos Fados que é importante o suficiente para mim para eu o saber de cór. As guitarras procuraram o meu tom e começaram a gemer o seu canto. Os meus ouvidos ouviram, pela primeira vez ao vivo, aquele som tão triste e tão incrivelmente belo que acompanhava um Fado que sempre significou tanto para mim. Fechei os olhos e deixei de estar ali. Demorei uns segundos a perceber quando deveria entrar, pois o ritmo do Fado é algo complicado de apanhar. Mas percebi que funciona um pouco como um rio. É uma corrente lenta de água que passa à nossa frente. Não sabemos ao certo qual a melhor altura para saltar, mas, assim que o fazemos, estamos já entregues àquele ritmo e velocidade viciantes e nada nos separa deles.

Não sei se cantei bem ou mal. Sei que nunca tinha sentido algo daquele género. Eu, que acho sempre que já esgotei todo o tipo de sensações, estava agora a experimentar algo do outro mundo. Não me lembrava sequer que estava num bar, não pensava nisso. Estava noutro lugar qualquer a sentir um turbilhão de coisas, embaladas pelo choro das guitarras portuguesas.

Se já não lavo no rio porque me gela este frio mais do que, então, me gelava?

A música terminou e acho que as pessoas aplaudiram. Pelo menos, assim mo contaram porque eu não tenho mesmo a certeza. Não estava bem em mim. Estava emocionado e demasiado confuso pelas palavras que tinha cantado me terem saído com uma facilidade surreal. Não sei se cantei bem ou mal, mas M. diz que se arrepiou e a verdade é que o meu pobre homem me convidou a aparecer quartas-feiras à noite, quando quisesse, para cantar.

Achei que, no meio de tantas tretas que escrevo aqui neste nosso blog, devia partilhar com vocês uma noite que me entregou um dos momentos mais importantes da minha vida.

Hoje estava a cantar o Fado no autocarro. A Mulher de Vermelho disse-me que se tivesse a minha voz saberia logo o que fazer com a sua vida. Para não a desperdiçar.

Por vezes, pergunto-me se não sou uma daquelas vivalmas que, à medida que os anos passam, se afastam da promessa do seu potencial para fazer outra coisa. Como um diamante bruto que não foi aproveitado e se estragou.

Para quem quiser ouvir o Fado que cantei:



Guess

P.S.: Mas este post não faz justiça àqueles 3 minutos de Fado, que deixaram em mim uma sensação qualquer permanente, como se tivesse deixado algo naquele lugar.

9 comments:

Anonymous said...

Obrigada por teres partilhado esse momento connosco. Deve ter sido dificil descrever tais sensações mais acho que o conseguiste fazer de maneira excelente. E parabens pela coragem pq não é toda a gente que se levanta no meio de um bar para ir cantar o fado!
Silêncio minha gente! ;)

フィリパ said...

és tu
=)*

Anonymous said...

A Tasca do Chico é um lugar unico e inesquescível principalmente a uma 5ª feira.
Foi lá que Camané e seu irmão , Pedro Moutinho, começaram a cantar, a ser ouvidos e agora conhecidos.
Quem sabe?!

Twin said...

haha! Eu já tinha dito que tinhas uma boa voz tu é que não acreditas!! Gostava de ter lá estado para ver :)
Epá força aproveita o teu potencial que tens aqui já uma fã! Então se tocares piano a cantar o fado... Caso contigo lololol

Morcegos no Sótão said...

Então agora o Fado é Deus?xD Ele, Este, viva as maiúsculas!LOL

Arranja outro fado especial para eu ir ver-te cantar, vá. =P

MJNuts

Guess said...

Eu, ser descoberto na Tasca do Chico? haha... essa gostava de ver.

Eu seiq eu tu acreditas em mim, Twin! Eu canto o fado e toco piano no teu casamento; não no nosso. haha

And my beloved MJNuts... eu sei que, à parte da 'Gaivota', este Fado também é especial para ti. Por a caso, lembrei-me agora do Dia Verdoreca, for that matter ;P

Duriel said...

Já tava com saudade de ler um post deste calibre aqui no tretas... wow

Se o fado ou a música fosse a tua vida, duvido que o dia a dia fosse tão emocional quanto foi esse momento.

Tenho inveja de quem lá teve.

Uma Pessoa said...

Potencial tem toda a gente para muita coisa.

O importante e' perseguir aquilo que queremos. Nao interessa realmente se pessoa X ou pessoa Y gosta mais ou menos daquilo que tu fazes. O que interessa e' que tu gostes e que o queiras fazer. A partir dai nada mais interessa.

Claro que se o que tu queres e' ser profissional no mundo da musica, a historia muda mas se gostas de cantar, canta.

Eu bem que digo 'a Maria que tu me lembras o Rufus. HA! :P A serio.

Morcegos no Sótão said...

Eu cá acho que todos os tugas devem ter o seu fadista interior. Uns melhores que outros é certo. Também era coisa que gostava de ter visto... pode ser que nos agracies um dia :) Para mim o fado é uma coisa muito pessoal e sinto sempre que o fado canta a história de toda a gente e não canta a história de ninguém. Ouve-se (e canta-se) mas não se explica.

Lili