Sunday, October 14, 2007

In Memoriam

Uma noite. Diferente das outras porque era o teu dia, o dia que tinha de ser perfeito para ti depois de tantos anos em que o mereceste. Das 0h às 7h, irrepetível. Dormir. Tarde de alegrias e de surpresas. Para ti, na tua companhia, porque fazes parte de mim como se fosses a minha carne e não tenho explicação para isso.

A noite. O mesmo bar da noite anterior. Talvez lhe deva chamar discoteca. Não sei, é uma mistura.

Gente estranha e invulgar por todo o lado. Não estávamos em casa, porque éramos novos no local. Mas também somos estranhos à nossa maneira e como tal, somos livres entre a estranheza e luminosos entre a normalidade.

Dançar. Música comercial. Música pimba. Um pouco de techno. Música brasileira de mau gosto. A vez anterior tinha sabido melhor.

São os olhos castanhos atrás do balcão. Escuros, penetrantes. Estão cansados e pouco se cruzam com os meus, mas sorriem quando o fazem. E então procuro e insisto e só consigo olhar naquela direcção.

Deixa-me louca. E vou ao bar buscar bebidas para mim, para ti, para ele. Tudo para ficar mais próxima. E os olhos fixam-me e às vezes sorriem e fingem escrever no cartão bebidas que eu estou a beber, mas não estou a pagar.

E o álcool percorre-me as veias e começa a chegar-me à cabeça. Será ao coração? E as emoções estão à flor da pele e há uma raiva, uma frustração crescente. De querer fazer e dizer o que nunca disse ou fiz, que nunca consegui pôr em prática.

Há um turbilhão no meu peito que me enche os olhos de lágrimas e é ridículo. São só olhares e algumas palavras, mas há uma óbvia empatia que me esmaga e com a qual não sei lidar. Uma atracção que eu já não lembrava como se sente. Como pode ser tão assustadoramente carnal e espiritual.

Ganho coragem. Arranjo monumentais doses de estupidez. E vou até ao bar, dou a volta e segredo-lhe ao ouvido as palavras do acto que me falta coragem para fazer.

Viro costas imediatamente. Não sei porquê. Qual terá sido a reacção?

Temos que ir embora, subir as escadas, a porta fecha-se atrás de nós. Mas há álcool no meu sangue e tenho de voltar, não dá para esperar até chegar a casa para ir à casa-de-banho.

Bato à porta uma e outra vez. Estou trémula e furiosa, sei disso mas é como se estivesse a pairar sobre mim mesma, sem conseguir evitar todas as sensações exacerbadas que me assolam. Alguém vem abrir, finalmente, e lá estão os olhos castanhos, junto ao porteiro. Há surpresa com o meu regresso.

Mas não foi por isso que voltei e nem ligo porque não vale a pena. Casa-de-banho. Cubículo. E enquanto lá estou, abre-se a porta e alguém espera que eu saia. Pressenti que fosse por isso que largaste o bar e subiste ao andar de cima.

Conversa estranha. Bonita. Inesperada. Há um compromisso e eu respeito-o. Há empatia, uma qualquer vaga identificação dos percursos de vida, dos gostos. Há uma distância física e um muro invisível a separarem-nos. Há alguma dor e não percebo porquê. Dizes-me que sofrer não vale a pena e subentendo que já sofreste muito. Eu afinal tenho mais um ano que tu, mas quem parece inocente sou eu. Talvez o seja. Ao pé de ti é provável, que te imagino com o mundo sobre os ombros.

Não há toque. Só olhares e inibições, um embaraço a flutuar no ar. Há uma certa mágoa. Receias o novo rótulo com que te podem catalogar e imaginas os filmes que se passarão nas cabeças para lá da porta fechada. Despedes-te assim, a arranjar forma de parecer que só aconteceu o que efectivamente aconteceu. Uma conversa. Desde quando é preciso a verdade ser exaltada e exagerada para acreditarem nela?

Estendo-te a mão e apertas-ma. Formal. Tirei a mão, mas voltei a estendê-la e tu a apertá-la. Ou será que nunca nos largámos e o aperto foi prolongado? Pedes-me para voltar e não prometo nada. Queixas-te um pouco do estado a que chegou o local, mas repetes o pedido. E largas-me e fechas a porta do cubículo sem um último olhar e eu hesito um momento antes de sair.

Quero voltar, mas não sei quando. Vais esquecer-me?

Obrigada por te teres dado ao trabalho de conversar. Desculpa se pareci imatura, impulsiva ou de alguma forma inconveniente. Não foi por mal.

"Shit. I was almost happy again."

MJNuts

E a ti, que és parte de mim como eu própria sou, obrigada por o teu dia perfeito ter também sido o meu.

10 comments:

K1111 said...

Estamos empatadas.

CHESB

Anonymous said...

Bonito, simples e tão sereno.
Está perfeito, Maria.

Tudo aquilo que tu és está ali escrito e demonstrado em palavras que dão festas à minha mente e me trazem recordações desses dias, dessas noites, dessa noite.

Emoções tão rubro, Maria. Aconteceu tudo, sentiu-se tudo. Estava tudo ali naquele espaço tão pequeno por baixo daquela estrada solitária.
Danças que alimentavam o ego, atenções que nos estragavam com mimos, olhares que nos agarravam incoscientemente, impulsos inquietantes e difícies de controlar, encontros inesperados e marcantes, momentos que aconteceram tão rápido, tudo.

"A woman's whole life in a single day. Just one day. And in that day her whole life." - Virginia Woolf

Amo-te

Jonas Matos said...

Que textos bonito! Gostei imenso!

Anonymous said...

Cravaste-me as emoções na pele. Que descrição fantástica e quão sincera maravilha!

Anonymous said...

Belo texto, adorei.
Cheio de emoção pura!

Obrigada pela visita.

Duriel said...

Todos temos um eu lamexas dentro de nós! Nem sei bem como reagir ao post =)

Morcegos no Sótão said...

Hey, dudu!=) Sim, todos temos um Eu lamechas algures, mas o teu é proeminente!xD Temos de combinar qualquer coisa. ;)

Obrigada a todos pelas vossas palavras. Desta vez, têm um significado ainda mais especial.

MJNuts

To said...

Belo e emotivo como sempre.

Maria Natália Pinto said...

O teu texto está lindíssimo, MJNuts, e tão bem escrito que não dá para evitar participar nas tuas emoções. Excelente, mesmo.

Morcegos no Sótão said...

Obrigada pelas tuas palavras, Dawn. :) Acho que a ideia era um pouco essa... Eu quando escrevo porque tenho de escrever (a outra opção seria explodir :P), parece que as coisas me saem com a intensidade com que as estou a sentir... Se conseguir passar essa sensação a quem lê, já é um bocadinho de missão cumprida.

Agora é só ver se a recordação se esbate, que isto viver assim...xD

MJNuts