No dia 19 de Dezembro de 2009, o Jardim Zoológico de Lisboa abria as suas portas para receber o Consulado de Angola. Os visitantes regulares do Zoo pouco ou nada importavam nesse dia, pois, no Natal, a quantidade de empresas que visita aquele local para ver golfinhos saltarem prevalece às famílias portuguesas de classe-média, que apenas desejam descobrir o que é um Okapi.
740 crianças, 14 monitores, 7 grupos, 8 seguranças e 2 Pais Natal. A verdade é que quando nos dizem que o nosso trabalho não passará de uma mera distribuição de presentes e balões, não podemos nunca imaginar que iremos fazer parte de algo feio e contrafeito. Angola é a terra dos opostos. É um dos países com maior riqueza no mundo, mas é, ao mesmo tempo, um país onde encontramos o lado mais horrendo da pobreza.
Cá em Portugal, o Consulado de Angola dispõe de um conjunto de serviços simpáticos que levam, por exemplo, os angolanos residentes em Portugal a uma visita ao Jardim Zoológico. Mas o propósito desta visita supera em grande escala aquilo que os presentes, os balões, as músicas e as cores nos transmitem à primeira vista.
Há um embaixador. Um embaixador que gastou mais de 100 000 euros para promover a sua imagem e ganhar prestígio na sua terra longínqua. Este embaixador não pode sentar-se nos assentos da plateia, onde todo o seu povo assiste ao Espectáculo dos Golfinhos. Sem o seu lugar VIP habitual, este embaixador precisa de almofadas para não machucar o seu rabo. Este embaixador precisa também de 8 seguranças que, para além dos seus fatos pretos, óculos escuros e auriculares, recebem sem problemas mais de 1500 euros por estarem ali. Mas este segurança tem tudo pronto para que as crianças se divirtam e possam ir para casa sem se esquecerem de quem arranjou tudo aquilo para elas.
Há uma tenda. Uma tenda enorme que dá abrigo a centenas de presentes para rapazes e para raparigas. Nessa tenda existe ainda um altar sinistro, onde repousa sobre uma mesa devidamente centrada um retrato do embaixador, cercado por uma moldura dourada e resplandecente. As crianças são obrigadas a fazer uma fila no exterior e a esperam ansiosamente a sua vez de serem compradas. Os pais ficam lá fora, claro. Não queremos que eles tenham a oportunidade de olhar para aquela montra colossal e escolher o presente que os seus filhos mais certamente iram gostar. Não, os filhos recebem aquilo que receberem. Se tiverem nome, dinheiro ou influência recebem um presente mais caro e mais espectacular. Se não tiverem nenhuma destas virtudes devem ficar felizes com uma bola de futebol ou um patético boneco do Rucca que nem sequer sabe cantar. E quem tem o poder de escolher e de entregar em mão o presente mais apropriado se não o embaixador e a sua mulher, a cônsul? São precisas fotografias que reportem a bondade destas duas pessoas e é preciso que as crianças saibam o que elas são capazes de fazer. O quê? Não gostas de futebol? Vais passar a gostar.
Depois de receberem o presente com o desdém mais inumano, que se figura numa empatia artificiosa nos breves segundos do click da máquina, as crianças são rapidamente conduzidas para fora da tenda. Lá dentro, no quentinho, com cadeiras para descansar e mesas decoradas com doces e aperitivos, ficam somente as crianças sortudas que têm pais fantásticos com muito dinheiro.
O Pai Natal pouco ou nada importa nesta acção solidária. Ele não pode dar os presentes porque não sabe o que é que cada criança pode ter. Não! Essa criança não leva esse presente. Onde é que vais com esse embrulho, Pai Natal? Pai Natal, desvia-te mais um pouco que estás a tapar o embaixador na fotografia. E enquanto um fazia o que podia para distribuir estes presentes de forma mais justa, o outro Pai Natal estava sentado na sua mítica poltrona, junto a uma bela e luminosa Árvore de Natal. Ele era como se fosse a figura que tinha dado uma pequena ajuda ao embaixador na concretização deste dia inesquecível. Mas o verdadeiro Pai Natal, o verdadeiro Senhor Bondoso de Barbas Douradas e Cinto de Cabedal era o embaixador. O pequeno cenário deste Pai Natal parecia algo pobre e triste, esforçando-se para se fazer notar, ao lado direito do pedestal do verdadeiro senhor.
Mas não faz mal porque as crianças que viam o Pai Natal lá de longe e que eram empurradas novamente para o exterior da tenda podiam contar com um fantástico espectáculo de magia e de palhaços, com muita música e muitas bolas de sabão. Só que por vezes estas manobras extravagantes, que tapam as verdadeiras intenções, podem ser perturbadas. Não se deixem comprar! Não aceitem este dinheiro corrupto! Não aceitem os presentes!, gritava ele. São perturbações de solução rápida e eficaz. Nada que uma música alegre, conffetis e dois seguranças brutamontes não resolvam e varram para longe.
Quando foi a minha vez de abandonar a tenda, dando os meus serviços por terminados, os presentes ainda existiam às centenas e a cônsul já ordenava, atrás de mim, que fechassem as portas e não deixassem entrar mais crianças. Cá fora, elas gritavam e empurravam-se para entrar, mas já era tarde. As que já tinham o seu presente corriam desvairadamente à volta de um Palhaço que já não conseguia sorrir. Quando olhou para mim, mostrou-me a maquilhagem da sua cara, borrada e garrida. Encolheu os ombros e sorriu com uma expressão que lamentava todo aquele teatro inevitável e incontornável. Afastei-me dele sem o poder salvar.
Não contem comigo para o próximo ano. Feliz Natal.
Guess
E a Escrita?
1 year ago
4 comments:
Olha, o Guess mudou de cor!:P
Há sempre negritude no Natal... (no pun intended!xD)
But I love it anyway. =)
MJNuts
Mudei de cor só porque é Natal.
«há sempre negritude no Natal» parece-me bastante apropriado. lol
I just want to feel it again!
Quando for grande quero ser como tu André =) mesmo.
Gostei do post, há gente mesmo sem escrúpulos :\ Bom ano e tenta ir para o próximo ano, mesmo com toda esta falsidade há as crianças e um palhaço que precisa de ser salvo.
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