Céus. Não sei como começar a falar-vos deste fim de ano; deste começar bombástico de 2010.
Ela estava em Londres em Erasmus. Nós estavamos com sede de ir para longe de casa. Creio que foi assim que começou.
Não consigo falar-vos de forma coerente e organizada sobre Londres. Não houve dias. Não houve um fim nem um início para eles. O tempo funcionou como um grande batido. Um batido com todos os sabores que o homem pode imaginar. É assim que Londres repousa na minha cabeça. O líquido espesso deste batido escorre-me pelas orelhas, pelo nariz, pelos olhos, pela boca, pelo rabo. É aquilo que eu agora urino, é aquilo que o meu corpo empurra cá para fora quando eu espirro. É a baba que sai da minha boca quando durmo.
Londres não é uma terra bonita de se ver. É uma terra perfeita para se viver. Perfeita para mim. Perfeita para nós. Um grupo bastante improvável de quatro (não três) pessoas, que combina tão bem com Londres como o doce de abóbora combina com o requeijão. Aquelas ruas foram feitas para nós, aqueles autocarros existem porque nós existimos, aquele quarto foi construído para nos receber.
As despensas querem todas ser como aquela pequena divisão. Com quatro pessoas para proteger viu-se obrigada a transformar-se num autêntico, mas necessário, caos. Esse caos ouviu coisas que mais ninguém ouvirá. A nossa roupa interior, nele perdida, assistiu a coisas que mais ninguém verá. O caos desapareceu e levou com ele a nossa vida ali. Tudo reaparecerá quando nós reaparecermos. Ele continuará à espera dos segredos dos nossos fins de noite e das músicas das nossas manhãs.
A noite de 31 de Dezembro foi algo como nunca se viu. A cerveja apagou parte dela, mas, felizmente, não a mais importante. Londres não fica em casa neste dia emblemático. O trânsito no centro é cortado e todos nós, vampiros daquela última noite de frio e de fogo, corremos para junto do rio e tornamo-nos nas margens mais bonitas do mundo inteiro. Aguardamos. O álcool aquece-nos. Faz frio. Dançamos. Rimos. Aguardamos. Caímos porque sim. Abraçamos quem quisermos. Falamos sobre aquilo que o álcool nos faz vomitar. Sorrimos. Saltamos. Procuramos sítios secretos para a urina evaporar. Voltamos. Aguardamos. Fotografamos quem tem um sorriso igual ao nosso. Corremos e cantamos. Olhamos para o céu. Aguardamos. Estamos cercados por pessoas. Aguardamos. Rimos e gritamos. Aguardamos. O frio desiste. Aguardamos. Os números aparecem. É agora. Cantamos. Pulamos. Não aguentamos. O zero está próximo. O chão desaparece. O calor está próximo. O zero vem aí. Gritamos mais um pouco. Os lábios ardem. O zero junta-se à festa. Os foguetes trazem com ele uma lenda. As pessoas explodem juntamente com os foguetes. Beijamo-nos. A meia-noite deixa de ser um projecto. Estamos ali. The Great Gig In The Sky. London Eye vomita as cores mais bonitas daquele céu. É tudo perfeito. O som que as milhares de pessoas emitem soa mais alto que os próprios foguetes. Estou bêbedo. Estou feliz. Sou a pessoa mais feliz do mundo. Aquele também é. O que está atrás dele também e a sua namorada ainda o é mais. O mundo é nosso. As margens do Thames acalmam e começa a nevar. É o nosso último presente. É a cereja no topo do bolo. Ainda temos força para pular mais uma vez. Não importa quem não está ali. 2010 vai ser perfeito.
Os restantes dias comprovaram-nos que 2010 será intenso. Seja a desafiar a gravidade num dos baloiços mais incríveis de Londres ou até mesmo a cantar a
Defying Gravity no
Wicked, um dos espectáculos mais bonitos que aqueles que gostam de musicais, e até os que não gostam, poderão ver. Os ringues de patinagem no gelo em Londres são surreais. Hipnotizam-nos e levam-nos para um lugar onde o Natal reina eternamente e onde aquilo que é arte e bonito se confude com as quedas mais hilariantes que a câmara devora como se fossem chocolates. Camden Market é muito mais que um ponto de encontro das pessoas mais esquisitas de Londres. Para além das milhares de montras que nos querem levar o dinheiro, é mais um sítio onde nós os quatro atingimos o supra sumo da felicidade. Sim, aquela cidade foi feita para nós. Foi feita para toda a gente. Foi feita para deslizarmos por aquelas ruas como se estivéssemos no
America's Next Top Model. Foi feita para cabermos os quatro numa cabine telefónica. Para podermos dançar em várias discotecas diferentes noite fora e sairmos delas com vontade de entrar em mais outra, mesmo que o Sol esteja já a piscar-nos o olho.
Se a vida fosse um musical, Londres era o lugar ideal.
As pessoas que conhecemos e as histórias em que participámos criaram os versos mais bonitos de uma canção que ficará connosco para sempre. Nem incêndios em bar nenhum, nem carteiras roubadas, nem aviões perdidos, nem todo o frio do mundo poderá acrescentar à viagem algo de negativo. É como se fosse uma paleta de várias cores onde por muito preto que se acrescente ele será sempre devorado pelas restantes cores. Londres estava à nossa espera. Estava tudo preparado para acontecer quando chegássemos aos sítios.
Quando eles passarem por aqui, aquela pessoa aparecerá.
Quando eles falarem sobre aquilo a neve irá começar a cair.
Quando eles entrarem por aquela porta terão uma supresa inesperada.
Fomos bem recebidos e queremos voltar. Queremos ficar. Ela perdeu o cachecol. Aquela perdeu o anel. A outra perdeu o
pin. Eu perdi a carteira. Mas ganhámos todos muito mais do que perdemos. Muito mais do que toda a roupa e acessórios que encontrámos pelas ruas de Londres. Muito mais do que o tempo que ficámos. Muito mais do que quatro dias.
Aquela cidade já é nossa. Não chegámos lá no dia 30. Não fomos embora no dia 3. Ainda lá estamos e por lá vamos ficar. Afinal de contas, vivemos naquela espelunca há mais de 20 anos.
Será eterno.
Guess
P.S.: Quando cheguei a Portugal, esta música esperava-me.