Uma cidade inteira deixa-se estar, meio despida, a sorver o sol. Uma cidade que prontamente se declararia uma (senão
a) referência de civilidade e decoro, à luz de um qualquer conjunto de preceitos impressos na tábua rasa ocidental.
Aqui há códigos de indumentária e de conduta. Aqui há mulheres em topless no meio da cidade. Aqui há homens de fatos à medida, nas carruagens do metro, com semblantes carregados de responsabilidade económica e marchas cheia de propósito. Aqui há homens de fato à medida, nas carruagens do metro, em sexta-feira embriagada, a dedicar a plenos pulmões serenatas a moças de cabelos armados e olhos carregados, desajeitadamente, de negrura. Aqui há casamentos reais cheios de pompa e circunstância. Aqui há roupa interior e preservativos dedicados a esses casamentos. Aqui há janelas sem cortinas e portas abertas. Casas que parecem convidar mas que possuem uma rede invisível em seu redor. Aqui a vergonha fica com quem espreita. Fica comigo. Que passo vidas inteiras a olhar. Que observo os homens semi-nus, num domingo langoroso, no parque a jogar à bola. Que me foco nos reflexos dourados dos cabelo de um bebé de feições (surpreendentemente) asiáticas, para o qual sorrio. Que me regozijo no olhar desfocado de um jovem cão e que lhe jogo a mão para lhe incentivar o entusiasmo, para ver os meus esforços invalidados pelo dono, que puxa pela trela e me admoesta com o olhar.
Aqui os animais correm livremente. Os pelicanos, os gansos, os patos, os esquilos, seguem-te pelo parque. Aqui as ovelhas fogem às crianças e às suas mãozinhas esticadas, tão determinadas em afagá-las e puxar-lhes a lã fofa. Aqui não há cães nem gatos vadios. Aqui o sol é precioso. Aqui a chuva é ignorada. Aqui a relva é pisada. Aqui é proibido alimentar os pombos. Aqui o rio é sujo. Aqui o rio é lindo e cheio de vida. Aqui, em dias de Verão, as crianças mais atrevidas atiram-se ao seu leito e nadam entre o lixo e as galinholas. Aqui é proibido nadar no Tamisa.
Aqui a roupa nova é barata e a que se finge velha cara. A verdadeiramente datada ainda mais. Aqui ¼ quilo de batatas custa 1 libra. Aqui um chocolate custa 30 cêntimos. Aqui a comida chinesa é barata. Aqui a comida mediterrânea é uma iguaria. Aqui o pão não é bom. Aqui os bolos fascinam o paladar. Aqui há feijão ao pequeno-almoço, em mesas de madeira riscadas e gastas. Aqui há chá das cinco, em cadeiras de veludo e estampados de algodão.
Aqui sorriem-te. Aqui não te olham nos olhos. Aqui o telejornal não é narrado em jeito de novela de faca e alguidar. Aqui a imprensa é facciosa e falaciosa. Aqui a cultura é de graça. Aqui o entretenimento é dispendioso. Aqui miscigenam-se. Aqui segregam-se. Aqui o olhar empanturra-se de belos homens. Aqui o olhar de muitos deles empanturra-se com outros belos homens.
Aqui não me importo com as idiossincrasias. Aqui sinto saudades das idiossincrasias da minha terra natal. Aqui sinto-me a borbulhar e não a secar. Aqui afogo-me em escolha.
Aqui entrevejo-me. Aqui não me reflicto. Como num puzzle, com um céu que parece infindável, sou uma peça azul de três quinas, com encaixe que se antevê mas ainda invisível a olho nu. Sou azul da cor do mar mas encaixo-me no céu.
Falta-me adjacência. Falta-me aconchego. Aqui.
Lili